Maria Luís pode
mas não deve
A porta giratória entre altos cargos públicos e interesses
privados é um assunto que tem que ser resolvido. A questão é definir
quanto é que estamos dispostos a pagar para termos um país mais decente.
Quantos anos de democracia são necessários para que consigamos
chegar a entendimentos alargados e duradouros sobre questões de
transparência, prevenção de conflitos de interesses e práticas éticas
que defendam o interesse público?
É que volta e meia damos por nós a discutir mais um caso destes, como
se a democracia tivesse sido inaugurada na semana passada. Pior: como
se a democracia e as boas práticas tivessem sido descobertas nos últimos
dias algures num qualquer país.
Só os ingénuos poderiam pensar que a contratação de Maria Luís
Albuquerque por uma empresa financeira britânica que gere activos em
Portugal e comprou créditos ao Banif não abriria polémica e seria motivo
de briga partidária.
Só podia. Maria Luís Albuquerque deixou de ser ministra das Finanças
há três meses, é actualmente deputada do PSD e agora vai aconselhar uma
empresa que, de uma forma ou de outra, teve relações financeiras com o
Estado português.
Pode fazê-lo? Pode. A actual lei de incompatibilidades não o impede.
Mas a pergunta certa a ser feita é se deve ou não fazê-lo. E a
resposta é não, porque não passou tempo nenhum desde que deixou as
funções de ministra das Finanças mas também por se manter deputada
enquanto colabora com essa empresa. O que nos leva a nova pergunta: se
não deve, pelas suspeitas que pode levantar, então porque não o impede a
lei? Porque os senhores deputados assim o determinaram quando aprovaram
o regime actualmente em vigor.
A questão das incompatibilidades, registos de interesses e, já agora,
declaração e controlo de rendimentos de titulares e ex-titulares de
cargos públicos são temas que temos permanentemente mal resolvidos mas
que são determinantes para a qualidade da democracia. A estes outros se
podem juntar: regras de financiamento partidário e controlo de gastos e
receitas em campanhas eleitorais.
Arrisco dizer que estas questões são sempre mantidas sob um
conveniente manto de nevoeiro porque os legisladores – governantes e
deputados – assim o preferem, já que são eles e os partidos a que
pertencem os principais beneficiários de regimes de transparência e
controlo que têm mais de farsa do que de eficácia. E quanto maior for a
ambiguidade mais vasto é o pântano que a chicana partidária cria quando
tem à mão um destes casos – repare-se na hipocrisia com que o PS abordou
este caso, criticando e suspeitando da decisão de Maria Luís
Albuquerque mas logo a seguir recusando promover qualquer alteração à
lei em vigor que, no futuro, pudesse prevenir casos semelhantes.
Sem hipocrisias, a porta giratória entre altos cargos públicos e
interesses privados é um assunto que tem que ser resolvido. O maior
problema pode nem estar na passagem para cargos nos órgãos sociais de
empresas, fenómeno com maior visibilidade. Basta olhar para as
transições entre a política e sociedades de advogados, que cada vez mais
são empresas de consultoria e plataformas de negócios do que gabinetes
de juristas que vão a tribunal ajudar a fazer justiça e defender os mais
indefesos e oprimidos, para perceber a extensão do problema.
A questão é, como sempre, pesar vantagens e inconvenientes e definir
quanto é que estamos dispostos a pagar para termos um país mais decente.
Sim, porque a democracia é um sistema caro. E uma democracia de
qualidade é um sistema muito caro.
Primeiro é preciso ter noção que os altos cargos do país são mal
pagos. É uma evidência que só por demagogia e populismo se pode negar.
Por isso, ao longo das últimas décadas esses mesmos políticos mal pagos
foram encontrando formas de se compensarem fora da folha de ordenado:
subvenções vitalícias, direito a pensão com poucos anos de serviço e
outras sinecuras. Não é mais transparente e lógico que se pague muito
melhor o próprio exercício de funções, até para haver maior capacidade
de recrutamento de gente competente?
Depois, temos que decidir se queremos na política gente com uma vida
própria, uma carreira, competências e mundo em várias áreas do
conhecimento ou se preferimos ter no Parlamento, no Governo e nas
autarquias sobretudo o produto do alfobre das jotas partidárias,
carreiristas políticos que não ambicionam mais do que isso. Os primeiros
são mais caros e podem trazer consigo conflitos de interesses no
momento da entrada e da saída de funções públicas. Os segundos são mais
baratos mas, em média, terão menos qualidade e consistência no exercício
dos cargos públicos.
Como se resolve o problema da saída de funções públicas? Com períodos
de nojo alargados, preferencialmente pagos, como já temos para alguns
cargos de regulação. E aqui regressa a questão da factura que estamos ou
não dispostos a pagar.
Temos, sobretudo, de acabar com esta prática que nos diz que muito
melhor do que ser governante é ser ex-governante e que a melhor forma de
dar impulso a uma carreira de advogado ou consultor é fazer um estágio
como deputado.
IN "OBSERVADOR"
04/03/16
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