Licença por maternidade:
Jurista, ex-sec. de Estado para a Igualdade
IN "PÚBLICO"
15/03/16
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as aparências iludem
O que não poderá acontecer é desequilibrar mais ainda os direitos individuais das pessoas na vida familiar, com prejuízo para as crianças e para o conjunto dos seus direitos.
Aprecia-se no Parlamento uma petição que quer aumentar para seis
meses a “licença por maternidade”, uma vez que a Organização Mundial de
Saúde entende que as crianças devem ser amamentadas em exclusivo até aos
seis meses de idade.
Parece uma boa ideia, cuja concretização
dependeria apenas de viabilidade financeira. Mas apenas o é na
aparência, porque, embora se afirme o contrário, iria ou impedir o gozo
pelo pai da actual licença parental inicial partilhável — que, para ter
duração significativa, depende de que, no total dos actuais 120 ou 150
dias, o pai goze, no mínimo, 30 em exclusivo —, ou elevar a duração da
licença ao menos para sete meses.
Isso acentuaria de modo
particularmente gravoso a assimetria entre mães e pais em matéria de
ausência do posto de trabalho para cuidado dos filhos, causa primeira da
discriminação contra as mulheres na actividade profissional — acesso,
progressão, área de intervenção, rendimentos, pensões — e na
participação no processo de decisão, incluindo a política, reforçando o
estereótipo de que “cuidar das crianças pequenas é função das mulheres”,
implicando danos sérios para o exercício da liberdade de todas elas ao
longo da vida, acentuando a sua dependência, diminuindo o seu poder face
aos homens e à sociedade e reforçando as condições para que sobre elas
se exerça violência de género, por pessoas e por instituições.
Acresce
que o Comité das Nações Unidas que vela pela correcta aplicação da
Convenção dos Direitos das Crianças sublinha que a convenção enfatiza
que:
— ambos os pais têm “responsabilidades comuns na educação e
desenvolvimento da criança”, com pais e mães reconhecidos como
cuidadores iguais;
— a interpretação do interesse superior da
criança tem de ser consistente com a convenção no seu conjunto... e a
apreciação do interesse superior de uma criança por uma pessoa adulta
não pode ter primazia sobre a obrigação de respeitar todos os direitos
da criança reconhecidos pela convenção;
e recomenda aos Estados que:
—
interpretem o “desenvolvimento (da criança)” no sentido mais vasto,
como um conceito holístico, abrangendo o desenvolvimento físico, mental,
espiritual, moral, psicológico e social da criança, (dado) que a saúde
das crianças pequenas e o seu bem estar psicossocial são, em muitos
aspectos, interdependentes;
— respeitem a primazia dos pais: mães e
pais... (que) têm a responsabilidade primacial de promover o
desenvolvimento e o bem-estar da criança.
Relativamente à matéria
objecto da petição, nas últimas observações dirigidas a Portugal (2014),
o Comité recomenda que tome medidas visando a melhoria da prática da
amamentação durante os seis primeiros meses, graças a medidas de
sensibilização, incluindo campanhas de sensibilização, e
disponibilizando informação e formação às entidades responsáveis, em
particular a profissionais que exercem nas maternidades, e aos pais. Não
preconiza para o efeito o alargamento da licença a gozar pelas mães.
No
que se refere às licenças concedidas por ocasião do nascimento de uma
criança, Portugal aplica hoje políticas reconhecidamente positivas para a
partilha entre as mães e os pais de responsabilidades familiares, com
benefícios para a criança, para a mãe, para o pai e para a sociedade.
O
que hoje temos é obra política de todos os partidos representados na
Assembleia da República — muitas vezes deliberando por unanimidade — e
das suas maiorias governativas, com contributos significativos dos
parceiros sociais, em que avultam as centrais sindicais, de várias
organizações não-governamentais, da investigação e da persistência
técnica e cívica de muitas pessoas em funções diversas e a trabalhar em
rede.
Devemos a Zita Seabra — na revisão constitucional de 1982 — o
início unânime da mudança de paradigma: a paternidade passa a ser
considerada um valor social eminente, em paralelo com a maternidade. E,
desde então até ao presente, a melhoria de condições para o exercício da
paternidade foi consistente, apesar de lenta:
— em 1984, a Lei de
Protecção da Maternidade e da Paternidade trouxe o pai para a
visibilidade da actividade económica, reconheceu-lhe o direito a
dispensa de trabalho com licença remunerada por morte ou incapacidade da
mãe; e permitiu-lhe, como à mãe, a assistência a filhos/as, a trabalho
em tempo parcial e horário flexível;
— a revisão desta lei em 1995
reconheceu ao pai o direito a faltar ao trabalho durante dois dias
úteis por ocasião do nascimento de filho/a, a partilhar por decisão
conjunta e a título de licença por paternidade, a licença não
obrigatória da mãe, e reforçou os direitos de assistência a filhos;
—
as revisões de 1997 e 1998 voltaram a reforçar para a mãe ou o pai os
direitos de assistência a filhos, prevendo a última acções para a
reinserção profissional;
— a revisão constitucional de 1997
incluiu a conciliação da actividade profissional com a vida familiar,
sem discriminação em função do sexo, nos direitos fundamentais dos
trabalhadores;
— em 1999, o reforço decisivo dos direitos
individuais dos homens, quando são pais com natureza idêntica aos
direitos das mães, garantiu-lhes licença por paternidade paga a 100%
(cinco dias), licença parental de 15 dias não transferível e paga a 100%
exclusivamente para eles, a título de acção positiva compensadora, e
dispensa para aleitação no 1.º ano da criança;
— em 2001, teve
lugar a primeira tentativa para tornar obrigatório o gozo da licença por
paternidade, mas apenas foi concretizada em 2004, operando na ordem
jurídica portuguesa a mudança simbólica determinante para a eliminação
dos estereótipos sobre os “papéis sociais” das mulheres e dos homens;
—
em 2009, a filosofia e a prática da partilha com duração apreciável das
licenças parentais iniciais entre a mãe e pai permitiram que, segundo
os últimos dados tratados e publicitados, em 2013, mais de um quarto dos
homens que nesse ano foram pais gozassem, sozinhos, licença partilhada;
—
em 2015, o aumento para 15 dias da licença inicial obrigatória
exclusiva do pai veio reconhecer-lhe um direito de duração superior ao
que a directiva da União Europeia reconhece à mãe.
Nada impede e
tudo aconselha que se melhorem com reforços normativos, designadamente
na linha do que sobre a matéria preconiza a OIT, as condições laborais
de exercício do direito de amamentação — a que a lei portuguesa não
impõe qualquer prazo e que abrange a extracção do leite materno para
oferecer à criança — após o gozo da licença parental inicial pela mãe.
Mas o que não poderá acontecer, com a Constituição que nos rege e as
obrigações e compromissos internacionais que nos vinculam, é
desequilibrar mais ainda os direitos individuais das pessoas na vida
familiar, com prejuízo para as crianças e para o conjunto dos seus
direitos, e agravando, de caminho, as várias dimensões da desigualdade
estrutural entre as mulheres e os homens que ainda perturba o país e que
emperra a concretização do Estado de direito democrático.
IN "PÚBLICO"
15/03/16
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