Esta Quaresma
começou bem (2)
O Papa observou que a hibridação irreversível da tecnologia aproxima o que está afastado, mas, infelizmente, torna distante o que deveria estar perto.
1. Há 25 anos, a convite do Centro Bartolomé de Las
Casas, de Cusco, participei num congresso internacional sobre modelos de
Inculturação e Modernidade, realizado na cidade do México. Samuel Ruiz
Garcia, bispo de San Cristobal de las Casas, estava hospedado no
convento dominicano onde também eu tinha sido fraternalmente acolhido.
Pude conversar longamente com esta figura do catolicismo mexicano que,
na altura, já andava nas bocas do mundo, vigiado pelo Governo e pelo
Vaticano. Contou-me que tinha sido um padre muito conservador. O
contacto com a vida terrível e humilhada dos índios de Chiapas, a
participação no Vaticano II e na conferência de Medellin (Colômbia),
mostraram-lhe que o caminho do catolicismo era o da incarnação nas
culturas nativas. Daí brotou a teologia indigenista que se prolongou na
teologia da libertação.
Participei, então, com representações de
várias dioceses, numa fervorosa romagem ao Santuário da Virgem de
Guadalupe, presidida pelo referido bispo, de protesto contra a prisão de
um padre responsável pela nova orientação pastoral indigenista
Voltei
a encontrar o bispo Samuel no meio do seu povo, onde se anunciava a
guerra na qual ele desempenhou um papel de mediador, evitando um
genocídio. Gostei de ver o Papa Francisco a rezar junto ao seu túmulo.
2. Na
visita pastoral ao México, o Papa foi extremamente duro com os
exploradores da população pobre, sobretudo com os narcotraficantes. Mas
ao fazer o balanço da viagem com os jornalistas, foi enfático: Quero
dizer uma coisa, uma coisa justa, sobre o povo mexicano. Tem uma
cultura… milenária. Sabeis que hoje, no México, se falam 65 línguas,
contando as indígenas? É um povo duma grande fé, também sofreu
perseguições religiosas, existem mártires: irei canonizar dois ou três.
(…)
O “povo” não é uma categoria lógica; é uma categoria mística. Como
conseguiu este povo não falir, com tantas guerras? E as coisas que
sucedem agora... Um povo que ainda tem esta vitalidade só se explica por
Guadalupe.
No primeiro dia, o destaque foi para o encontro com o
episcopado. Perante os graves problemas que este tem de enfrentar, o
Papa lembrou que era preciso um olhar que reflectisse a ternura de Deus.
Por isso, sede bispos de olhar límpido, alma transparente, rosto
luminoso; não tenhais medo da transparência. A Igreja não precisa da obscuridade para trabalhar. Vigiai
para que os vossos olhares não se cubram com as penumbras da névoa do
mundanismo; não vos deixeis corromper pelo vulgar materialismo nem pelas
ilusões sedutoras dos acordos feitos por baixo da mesa; não ponhais a
vossa confiança nos “carros e cavalos” dos faraós de hoje, porque a
nossa força é a “coluna de fogo” que irrompe separando em duas as águas
do mar, sem fazer grande rumor .
O Papa observou que a
hibridação irreversível da tecnologia aproxima o que está afastado, mas,
infelizmente, torna distante o que deveria estar perto.
Por isso,
nos vossos olhares, o povo mexicano tem o direito de encontrar os
indícios de quem “viu o Senhor”. Isto é o essencial. Assim, não percais
tempo e energias nas coisas secundárias, nas críticas e intrigas, em
projectos vãos de carreira, em planos vazios de hegemonia, nos clubes
estéreis de interesses ou compadrios. Não vos deixeis paralisar pelas
murmurações e maledicências. Introduzi os vossos sacerdotes nesta
compreensão do ministério sagrado. A nós, ministros de Deus, basta a
graça de “beber o cálice do Senhor”, o dom de guardar a parte da sua
herança que nos foi confiada, apesar de sermos administradores
inexperientes. Deixemos o Pai atribuir-nos o lugar que preparou para nós. Poderemos nós ocupar-nos verdadeiramente doutras coisas que não
sejam as do Pai? Fora das “coisas do Pai” perdemos a nossa identidade e,
culpavelmente, tornamos vã a sua graça.
Se o nosso olhar não dá
testemunho de ter visto Jesus, então as palavras que recordamos d’Ele
não passam de figuras retóricas vazias. Talvez expressem a nostalgia
daqueles que não podem esquecer o Senhor, mas, em todo o caso, são
apenas o balbuciar de órfãos junto do sepulcro. No fim de contas, são
palavras incapazes de impedir que o mundo fique abandonado e reduzido ao
próprio poder desesperado.
3. Peço-vos que não
subestimeis o desafio ético e anticívico que o narcotráfico representa
para a juventude e para a sociedade mexicana inteira, incluindo a
Igreja.
(…) Qual é a tentação que nos pode vir de ambientes
dominados pela violência, a corrupção, o tráfico de drogas, o desprezo
pela dignidade da pessoa, a indiferença perante o sofrimento e a
precariedade? Qual é a tentação que repetidamente podemos ter nós, os
chamados à vida consagrada, ao presbiterado, ao episcopado?
Acho que a poderemos resumir numa só palavra: resignação.
À vista desta realidade, pode vencer-nos uma das armas preferidas do
demónio: a resignação que nos entrincheira nas nossas “sacristias” e
seguranças aparentes e nos trava na hora de arriscar e transformar.
Pai Nosso, não nos deixeis cair em tentação .
Esta Quaresma ainda não terminou.
IN "PÚBLICO"
28/02/16
.
Sem comentários:
Enviar um comentário