18/02/2016

PAULO DE ALMEIDA SANDE

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O fim dos jornais

Por vezes sentimos isso. Pensamos neles. Mas às vezes, outras vezes, reflectimos sobre o futuro do quarto poder. A independência dos jornais é atributo fundamental dos regimes livres.

“A notícia da minha morte é manifestamente exagerada”, disse um dia em entrevista Samuel Langhorne Clemens, aliás Mark Twain.

Vem isto a propósito das notícias que, sucessivamente, nos dão conta das dificuldades vividas pelos jornais impressos do Mundo; a mais recente proveio do dono do Indy, petit nom do “The Independent”, um jovem jornal britânico fundado em 1986, politicamente de esquerda, economicamente pró-mercado, editorialmente “livre de preconceitos partidários e da influência do proprietário”, lema que ostentou na primeira pagina até 2011. Evgeny Lebedev, o tal proprietário, anunciou há dias que “The Independent” e “The Independent on Sunday” deixam de se publicar em papel em finais de Março. O destino: o reforço da publicação digital.

Em Portugal, as notícias sobre a vida e morte dos jornais – ou do seu emagrecimento (também conhecido como despedimentos) – comovem pouca gente, tal a sua frequência. No ano que passou, por exemplo, o jornal “I” e o “Sol” sofreram um processo de reestruturação, com fusão de redacções e redução a um terço do número dos trabalhadores (quase todos jornalistas). E são recorrentes as notícias pondo em dúvida o futuro de jornais como o Público, que se diz dar prejuízo desde praticamente a fundação, apesar de ser (ou ter sido) um dos jornais de maior qualidade publicados em Portugal; ou o Diário de Notícias, ao sabor da mudança dos directores, a recordar-nos nomes como Augusto de Castro, durante o Estado Novo, o director-adjunto José Saramago em 1975, e ainda Cunha Rego, Mário Mesquita, Mário Bettencourt Resende.

Entre os raros títulos aparentemente imperturbados estão os desportivos, que parecem imunes a ventos, tempestades e mercado; ou talvez não, talvez seja sobretudo o mercado que os garante, assente no fenómeno chamado futebol. Dos outros, generalistas ou não, destacam-se o Expresso e o Correio da Manhã (CM): pode atribuir-se o sucesso do Expresso à tradição, com muita gente a manter o hábito de sair de casa sábado de manhã para comprar um exemplar, guardado e lido (às vezes) ao longo da semana; quanto ao CM releva a natureza das notícias, banhadas em sangue e sexo (para além de se tratar de um jornal muito bem feito do ponto de vista jornalístico). Mas mesmo esses, com tempo e na proporção inversa do predomínio do digital, correm sérios riscos.

Os jornais não são produtos como os outros. A sua matéria prima principal não é a terra, os produtos químicos, minerais ou vegetais. São os factos: os acontecimentos políticos, económicos, sociais; a vida das pessoas; os acidentes e incidentes do dia a dia. Os jornalistas investigam, analisam, sintetizam e transformam esses factos em notícias. Os leitores consomem-nas com os olhos, com as mãos e, sobretudo, com o cérebro e o coração. Os jornalistas são trabalhadores do concreto da vida, que desmaterializam e transformam em alimento para o espírito.

Assistimos nos últimos meses, com pena e preocupação, ao estertor de um título importante do jornalismo económico em Portugal: o Diário Económico (e o seu prolongamento audiovisual, o Económico TV). Como acontece com muitas empresas em dificuldades, chegam-nos ecos de salários em atraso, do passivo, de penhoras, da falta de compradores; explicam-nos que o fim do BES e os problemas da PT “secaram” o financiamento da Ongoing, dizem-nos que o único potencial comprador exige um corte substancial da dívida e uma prévia reestruturação do jornal (isto é… despedimentos).

Ouvimos e lemos o jornal, feito por profissionais com salários em atraso e um futuro pessoal sombrio, lemos as notícias que escrevem e pensamos no rumo que as coisas têm tomado. Por vezes, quando lemos textos pungentes deles, ou sobre eles, apelos desesperados, dignos e apaixonados, profundamente humanos, que nos chegam quase sempre, ironicamente, por via digital – em redes sociais, blogs, jornais electrónicos – sentimo-nos solidários com essa gente corajosa e digna, que continua a escrever por dever de ofício e imperativo de consciência, a informar-nos, a transformar os factos em notícias.

Por vezes sentimos isso. Pensamos neles. Mas às vezes, outras vezes, reflectimos sobre o futuro do quarto poder. A independência dos jornais é atributo fundamental dos regimes livres. Sem liberdade de imprensa, nenhuma democracia é digna desse nome. É certo que há, como desabafou uma amiga minha – ex-jornalista desiludida – maus jornalistas, maus jornais, má informação. Jornalistas venais, que fazem fretes, que servem patrões com agenda. Como há, sabemo-lo bem, excelentes jornalistas, excelentes jornais, excelente informação. Jornalistas honestos, de camisola vestida com os dizeres veritas omnia vincit (a verdade acima de tudo).

Mas independentemente da qualidade e da honestidade dos profissionais, o risco do desaparecimento dos jornais é real. Sejamos claros: é dos jornais impressos que se trata. O Indie não faz senão seguir exemplos anteriores, como o do Huffington Post ou, entre nós, deste excelente Observador. Não nos enganemos pois, o que se está a passar obedece á inevitável lei da mudança, propulsionada pela evolução tecnológica, induzida pela transformação dos hábitos dos leitores. E continuará sempre a haver espaço para as velhas tecnologias. Não deixará completamente de haver notícias escritas sobre papel impresso. Vídeo killed the radio star, cantaram em 1979 os Buggles, não sem razão. Mas ouvir uma canção com ouvidos de ouvir, despojada da distracção frenética das imagens dos modernos videoclips, separa o trigo do joio, uma grande voz duma figura animada que canta.
Destruição criativa, chamou-lhe Shumpeter.

Jornais e jornalistas terão de se adaptar ao maravilhoso Mundo novo digital sem pôr em causa a verdade e a qualidade das notícias. Também nessa nova realidade, os bons jornalistas, os que investigam e se interrogam, servindo a verdade que vence acima de tudo, serão naturalmente separados dos maus, dos venais, pelo julgamento dos leitores. O tempo é de transformação e de adaptação, esse é o desafio. Mas o tempo continua a ser da qualidade, do profissionalismo e da verdade.

Como bem frisou o já citado Mark Twain, aliás Samuel Clemens: “para aqueles que têm apenas um martelo como ferramenta, todos os problemas parecem pregos”.

PROFESSOR DO INSTITUTO DE ESTUDOS POLÍTICOS DA UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA

IN "OBSERVADOR"
15/02716

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