O tufão
É muito provável que, nos próximos anos, a
grande maioria das lojas antigas de Lisboa desapareça. E com elas, uma
parte dos saberes tradicionais, do comércio especializado e muito do
charme da capital morram para sempre. A que se deve tal razia? As razões
são várias, cada uma delas aparentemente um benefício para a cidade,
porém coincidindo temporalmente todas elas, uma catástrofe está a
acontecer.
Há anos que urgia uma
alteração a uma lei das rendas antiga e extremamente penalizadora para
os senhorios, tantas vezes deixados sem meios sequer para a conservação
das suas propriedades. A lei foi alterada e nela foram introduzidos
mecanismos para arrendatários envelhecidos mas o mesmo tipo de
salvaguarda não se estendeu aos arrendamentos comerciais. Hoje, com a
lei em vigor, uma loja centenária pode ser despejada no espaço de poucos
meses sem apelo nem agravo caso o proprietário invoque a realização de
obras profundas no imóvel. Mas, à parte este pormenor, a lei foi saudada
como a reparação de uma longa injustiça.
O
centro histórico de Lisboa estava, em termos de edificado, muito
degradado e até parcialmente desocupado. Comparado ao de outras capitais
europeias, o mercado imobiliário lisboeta era substancialmente mais
barato e, naturalmente, o investimento estrangeiro reparou no facto. Nos
últimos anos, mas sem dúvida também nos próximos, esse capital
internacional está a comprar, fazendo disparar os preços, investindo
para recuperar e comercializar. Uma benesse, pensaram os responsáveis
municipais, tantos anos às costas com o drama da falta de investimento
privado na recuperação dos prédios do centro antigo da cidade.
Finalmente,
os últimos anos assistiram também à chegada de turistas do mundo
inteiro a Lisboa, num crescendo nunca visto. A imprensa internacional
descobriu uma cidade com história, uma situação invejável de praia à
porta, charme a rodos a passear pelas ruas antigas semeadas de lojinhas
com carácter, vistas deslumbrantes a cada esquina, e tudo isto foi
gabado em páginas brilhantes de revistas e jornais. O fenómeno surgiu em
época de crise, ajudando a salvar a economia da cidade e fomentando
novos negócios na área da hotelaria e turismo para toda uma nova geração
com outra atitude empreendedora. Tantas oportunidades a faiscarem que,
como na canção dos Timbuk 3, o boletim meteorológico da capital passou a
um constante the future is so bright I"ve got to wear shades.
Cada
um destes fatores, isolados, parece coisa boa. Porém, coincidindo os
três temporalmente, conjugaram-se para causar a tempestade perfeita, um
tufão de força tamanha que ameaça hoje a identidade da própria cidade.
Nos últimos anos fecharam dezenas de lojas em Lisboa, algumas delas
peças emblemáticas da vida urbana. E neste momento, muitas mais temem
pelo seu futuro - quase todas na verdade.
Este
drama não é exclusivo de Lisboa, pois muitas das cidades europeias se
confrontam com o mesmo problema. Tanto o comércio como o turismo mudaram
profundamente, tornando-se fenómenos globais. As cadeias internacionais
multiplicam os seus pontos de venda, ameaçando tornar as zonas
comerciais das cidades monotonamente iguais. E o turismo continuará a
crescer nos próximos anos, segundo todas as previsões, acolhendo
novidades como o alojamento local que, em demasiada abundância, altera
drasticamente a vida de bairro. É por isso que muitas cidades procuram
hoje estratégias para proteger o seu comércio tradicional como é o caso
de Barcelona ou Paris - compreendendo que a atividade comercial é afinal
também uma marca cultural da cidade. Pois é a minúscula Luvaria Ulisses
que faz a diferença da cidade, nunca a existência do gigante H&M do
outro lado da rua.
A Câmara de Lisboa
acordou para o problema recentemente, criando o programa Lojas com
História no início de 2015. O seu Conselho Consultivo é um luxo, a
equipa que o coordena - do Departamento de Design da Faculdade de
Belas-Artes em articulação com técnicos camarários - tem visão e
inteligência e tudo isto prometia uma intervenção exemplar.
Infelizmente, o programa está parado há três meses por falta de vontade
política. Lá fora, o tufão continua a dizimar. Nós vamos gritando ao
vento. A sensação é que ninguém nos ouve. Um dia destes sairemos à rua e
a cidade que amamos será apenas uma memória. Nem os turistas a
reconhecerão.
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Lojista/A Vida Portuguesa e Membro do Conselho Consultivo do programa Lojas com História da CML
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
09/01/16
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