10/01/2016

CATARINA PORTAS

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O tufão

É muito provável que, nos próximos anos, a grande maioria das lojas antigas de Lisboa desapareça. E com elas, uma parte dos saberes tradicionais, do comércio especializado e muito do charme da capital morram para sempre. A que se deve tal razia? As razões são várias, cada uma delas aparentemente um benefício para a cidade, porém coincidindo temporalmente todas elas, uma catástrofe está a acontecer.
Há anos que urgia uma alteração a uma lei das rendas antiga e extremamente penalizadora para os senhorios, tantas vezes deixados sem meios sequer para a conservação das suas propriedades. A lei foi alterada e nela foram introduzidos mecanismos para arrendatários envelhecidos mas o mesmo tipo de salvaguarda não se estendeu aos arrendamentos comerciais. Hoje, com a lei em vigor, uma loja centenária pode ser despejada no espaço de poucos meses sem apelo nem agravo caso o proprietário invoque a realização de obras profundas no imóvel. Mas, à parte este pormenor, a lei foi saudada como a reparação de uma longa injustiça.
O centro histórico de Lisboa estava, em termos de edificado, muito degradado e até parcialmente desocupado. Comparado ao de outras capitais europeias, o mercado imobiliário lisboeta era substancialmente mais barato e, naturalmente, o investimento estrangeiro reparou no facto. Nos últimos anos, mas sem dúvida também nos próximos, esse capital internacional está a comprar, fazendo disparar os preços, investindo para recuperar e comercializar. Uma benesse, pensaram os responsáveis municipais, tantos anos às costas com o drama da falta de investimento privado na recuperação dos prédios do centro antigo da cidade.
Finalmente, os últimos anos assistiram também à chegada de turistas do mundo inteiro a Lisboa, num crescendo nunca visto. A imprensa internacional descobriu uma cidade com história, uma situação invejável de praia à porta, charme a rodos a passear pelas ruas antigas semeadas de lojinhas com carácter, vistas deslumbrantes a cada esquina, e tudo isto foi gabado em páginas brilhantes de revistas e jornais. O fenómeno surgiu em época de crise, ajudando a salvar a economia da cidade e fomentando novos negócios na área da hotelaria e turismo para toda uma nova geração com outra atitude empreendedora. Tantas oportunidades a faiscarem que, como na canção dos Timbuk 3, o boletim meteorológico da capital passou a um constante the future is so bright I"ve got to wear shades.
Cada um destes fatores, isolados, parece coisa boa. Porém, coincidindo os três temporalmente, conjugaram-se para causar a tempestade perfeita, um tufão de força tamanha que ameaça hoje a identidade da própria cidade. Nos últimos anos fecharam dezenas de lojas em Lisboa, algumas delas peças emblemáticas da vida urbana. E neste momento, muitas mais temem pelo seu futuro - quase todas na verdade.
Este drama não é exclusivo de Lisboa, pois muitas das cidades europeias se confrontam com o mesmo problema. Tanto o comércio como o turismo mudaram profundamente, tornando-se fenómenos globais. As cadeias internacionais multiplicam os seus pontos de venda, ameaçando tornar as zonas comerciais das cidades monotonamente iguais. E o turismo continuará a crescer nos próximos anos, segundo todas as previsões, acolhendo novidades como o alojamento local que, em demasiada abundância, altera drasticamente a vida de bairro. É por isso que muitas cidades procuram hoje estratégias para proteger o seu comércio tradicional como é o caso de Barcelona ou Paris - compreendendo que a atividade comercial é afinal também uma marca cultural da cidade. Pois é a minúscula Luvaria Ulisses que faz a diferença da cidade, nunca a existência do gigante H&M do outro lado da rua.
A Câmara de Lisboa acordou para o problema recentemente, criando o programa Lojas com História no início de 2015. O seu Conselho Consultivo é um luxo, a equipa que o coordena - do Departamento de Design da Faculdade de Belas-Artes em articulação com técnicos camarários - tem visão e inteligência e tudo isto prometia uma intervenção exemplar. Infelizmente, o programa está parado há três meses por falta de vontade política. Lá fora, o tufão continua a dizimar. Nós vamos gritando ao vento. A sensação é que ninguém nos ouve. Um dia destes sairemos à rua e a cidade que amamos será apenas uma memória. Nem os turistas a reconhecerão.
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Lojista/A Vida Portuguesa e Membro do Conselho Consultivo do programa Lojas com História da CML 

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
09/01/16

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