O mundo em mudança
Nada na história recente da atribuição
do Nobel fazia prever que se regressasse aos tempos em que se atribuía o
prémio à descoberta de um antibiótico, por exemplo
Na
segunda-feira, 5 de outubro, quando cheguei ao meu gabinete, no
Instituto de Medicina Molecular, já tinha inúmeros pedidos de
entrevista/comentário, dos mais diversos meios de comunicação social.
Motivo? Uma completa surpresa. O mais desejado prémio, o Nobel da
Fisiologia ou Medicina foi para três cientistas que fizeram descobertas
relacionadas com o tratamento de doenças parasitárias. Dividido, metade
para William C. Campbell e Satoshi Omura "pelas suas descobertas sobre
uma nova terapia contra infecções causadas por parasitas nemátodes" e a
outra metade para Tu Youyou "pelas suas descobertas relativas a uma nova
terapia contra a malária".
Incrivelmente, esta escolha deixou-me
espantada; a mim que trabalho com parasitas, nomeadamente aquele que
causa a malária, há mais de 20 anos. Sem dúvida que esta escolha é uma
novidade a vários níveis. Depois de em 2014 o prémio ter sido atribuído a
neurocientistas que descobriram as células do cérebro que nos permitem
orientar no espaço, ou no ano anterior para o sistema de transporte
celular.
A verdade é que nos habituamos a que sejam premiadas
descobertas científicas com extraordinário impacto no nosso
conhecimento; ou seja, descobertas que mudam a nossa forma de
descodificar a vida. No caso do prémio deste ano, premiaram-se soluções
capazes de resolver um problema gravíssimo dos nossos tempos mas que não
são por si descobertas científicas. Estima-se que os chamados parasitas
nemátodes afetem um terço da população mundial, sobretudo na África
subsariana, no Sul da Ásia e nas Américas Central e do Sul. Provocam a
chamada "cegueira dos rios" bem como a elefantíase. A primeira, antes de
levar à perda total da visão, causa uma comichão tão intensa pelo corpo
todo que não é incomum ver pessoas com facas afiadas ou tijolos a
arranhar-se constantemente durante horas, tentando procurar algum
alívio. Já a elefantíase atinge cem milhões de pessoas e causa inchaços
monstruosos e crónicos em diversas partes do corpo. Por outro lado, a
malária causa quase um milhão de mortes todos os anos na grande maioria
em crianças com menos de 5 anos. Os cientistas em questão foram
premiados por revelar fármacos com impacto espantoso nestas doenças
parasitárias, mas não por descobertas que representam um avanço no
conhecimento científico ou na forma como estes parasitas causam doença.
Nada
da história recente da atribuição do Nobel fazia prever que se
regressasse aos tempos em que se atribuía o prémio à descoberta de um
antibiótico, por exemplo. Como em 1939, quando o alemão Gerhard Domagk
foi laureado pela descoberta das propriedades antibacterianas do
prontosil, a primeira das sulfonamidas (o cientista não foi autorizado
pela Alemanha a receber o prémio...).
Esta
foi a minha primeira surpresa, que interpreto como um sinal inequívoco
de mudança: a distinção de uma investigação direcionada ou aplicada. Mas
outros aspectos tornam esta escolha surpreendente. Como o facto de ter
sido premiado algo que tem impacto em populações e sociedades de uma
parte do mundo que muitas vezes consideramos não ser a nossa. Será este
um sinal de que começamos a compreender o mundo global onde vivemos e
que os problemas dos outros são problemas de todos? Espero
verdadeiramente que sim.
Finalmente,
gostaria de chamar a atenção para um aspecto curioso relacionado com a
forma como a terapia para combater a malária foi desenvolvida. Tu Youyou
fazia parte de uma equipa do governo chinês liderado por Mao Tsé-Tung
na década de 60 do século passado, que tinha por objectivo encontrar uma
nova terapia para tratar a malária. Os medicamentos disponíveis contra a
malária começavam a falhar devido a resistências do parasita contra
esses mesmos fármacos. Mao ordenou a um grupo de cientistas que
encontrassem uma solução. Tu Youyou foi a pessoa que realmente deu
início a este projeto na China. A equipa decidiu voltar-se para a
literatura chinesa da química medicinal - que é a química derivada de
plantas, tratamentos com ervas - e identificou centenas de compostos que
mostravam ter capacidade no alívio de febre. De seguida, começou a
testar sistematicamente esses extratos vegetais e dessa forma surgiu a
artemisinina, que é extremamente eficaz no tratamento da malária. A
artemisinina é hoje responsável pela redução de metade do número de
mortes por malária em todo o mundo. Algumas pessoas podem ter visto
neste prémio um sinal de credibilidade e reconhecimento das terapias
alternativas ou tradicionais. Mas é preciso notar que a descoberta só se
tornou credível e válida depois de ter sido testada pelo método
científico.
Podemos perguntar-nos se o mesmo poderá acontecer com outros
produtos. Sim, é possível, mas só se forem devidamente testados.
Também
é curiosa a história da descoberta do medicamento estudado por Campbell
e Omura, a avermectina - um derivado da qual, a ivermectina, permitiu
reduzir drasticamente a incidência da cegueira dos rios e da
elefantíase. Este produto já era amplamente usado em medicina
veterinária e o que os dois cientistas fizeram foi testar a sua
aplicação em humanos. "O tratamento tem tido tanto êxito, que estas
doenças estão à beira da erradicação, o que seria um feito maior da
huma-nidade", disse o Comité Nobel no comunicado de anúncio do prémio.
Apesar
de eu ver em tudo isto um positivo sinal dos tempos, não posso deixar
de ressalvar que continuamos a precisar da investigação chamada básica
ou fundamental (aquela que produz novo conhecimento e que tenta saciar a
nossa curiosidade) de a premiar e distinguir. Porque nunca se sabe de
onde vem a solução para os grandes problemas da humanidade. O que hoje é
tido como investigação fundamental, amanhã poderá ser a cura de uma
doença grave. Só o futuro o dirá e não podemos virar-lhe as costas.
* Cientista, Directora Executiva do Instituto de Medicina Molecular.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
29/12/15
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