A justiça penal
no programa de Governo:
esperar para ver
A Justiça tem sido, porventura, das áreas em que Portugal menos tem evoluído nestes pouco mais de 40 anos de democracia.
Os Programas de Governo são,
normalmente, documentos mais ou menos vagos, o que em parte se
compreende tendo em conta a necessidade de ajustar o que se prevê ao que
se encontra no terreno em cada ministério e à evolução da conjuntura
económico-financeira tão volátil nos nossos dias.
Especificamente quanto ao que consta do Programa do XXI Governo
Constitucional sobre a justiça penal, saúdo a preocupação com as
finalidades sancionatórias tal qual se acham previstas no art. 40.º, n.º
1, do Código Penal e que já se retiram da CRP. Assim, a ressocialização
— sempre proposta e nunca imposta —
encontra nas “casas de saída” uma ideia já antiga e que, com honrosas
excepções, nunca saiu do papel e, quando tal sucedeu, tem sido mantida
por associações privadas. É uma indeclinável tarefa do Estado, assim
como o desiderato de incrementar a rede de actividades produtivas dentro
dos estabelecimentos prisionais, em ligação com a comunidade.
Por
outro lado, o Governo prepara-se, se bem lemos o programa, para
ressuscitar a mediação penal, o que exige uma mudança profunda da Lei
n.º 21/2007, de 12/6, no essencial ligando-a à suspensão provisória do
processo e não à desistência de queixa, ao acompanhamento efectivo do
acordo de mediação pelo MP e à revogação de uma norma que a todos nos
envergonha: a de que o/a ofendido/a tenha de apresentar uma nova
queixa(?) em situações de inadimplemento do acordo, em violação de
questões técnicas básicas e, sobretudo, provocando uma incompreensível
vitimação secundária.
Cuidados se exigem em não privatizar a justiça
penal e em manter os chamados “meios alternativos de resolução de
litígios” em estritos limites, uma vez que o ius puniendi estatal
é a melhor garantia de uma justiça penal efectivamente mais justa e não
ao dispor de quem tem mais capacidades económicas para negociar a sua
liberdade.
Positiva é ainda a necessidade detectada (o que não é
novo) de estudar algumas penas de substituição como a prisão por dias
livres e o regime de semidetenção e, acrescentamos nós, de incrementar o
seu catálogo, sempre dentro de limites que tornem a prevenção geral e
especial uma realidade e não uma utopia. Aliás, já defendemos que se foi
longe de mais ao permitir, em 2007, que o limite máximo da medida
concreta da pena a substituir se elevasse de três para cinco anos, o que
sucedeu, no essencial, por razões de poupança do Estado. Do mesmo
passo, o elevado número de penas privativas de liberdade cumpridas pela
não liquidação da multa exige, mesmo após todas as faculdades
(porventura exageradas) de cumprimento desta última, que se lhe possa
aplicar a obrigação de permanência na habitação. Também encaramos como
vantajosa que esta pena de substituição se possa alargar para medidas
até três anos, com a faculdade de o condenado sair para trabalhar ou
estudar, em termos mais claros e gerais do que hoje já existe.
O combate à violência doméstica passa por uma abordagem holística, que deve perceber que o Direito Penal não pode ser uma prima ratio
do sistema e que, sobretudo, para além da prevenção, tem de se enfocar
não só na vítima, mas também no agressor. A “espiral de violência” só
pode ser cortada se não proscrevermos este último elemento da relação
delitual, o que exige uma parceria com instituições que, no terreno, já
intervêm com agressores de violência doméstica ou sexuais. A rede
institucional, sobretudo as casas de abrigo, reclama uma maior atenção,
pois é, no mínimo, desumano que mulheres (são elas as principais vítimas
deste tipo de crime, como é infelizmente sabido) tenham de ser
retiradas de perto dos agressores e colocadas em pensões de duvidosa
fama, muitas vezes com os seus filhos menores.
O programa para a área da justiça penal e bem
não é exagerado em tudo mudar. Fazê-lo seria meio caminho andado para
tudo ficar na mesma. Mas gostaria de ver referência a uma eventual
limitação da fase de instrução, já defendida por alguns autores, a
medidas mais concretas em sede de prova pericial (motivo de grande
delonga processual) ou a uma explicitação do que são os “incentivos à
produtividade” dos magistrados, pois, se mal arquitectados, podem bulir
com fundamentos do Estado de direito. O que não significa note-se que ponha de lado, in limine, outras formas de avaliação do desempenho para além das já existentes inspecções.
Uma
incógnita grande é saber o que será, de facto, o “conselho de
concertação para o sistema judicial”, defendendo, como outros, que
deveria existir um único Conselho para a Justiça, presidido pelo chefe
de Estado e com representação de todos os “operadores judiciários” e do
Parlamento que, para além de outras funções, definiria as principais
linhas estratégicas do sector, em concertação permanente, evitando que a
Justiça seja uma “arma política de arremesso” e dando ao sistema algo
de que ele necessita e que não tem tido: estabilidade e tempo para
implementar e avaliar reformas em catadupa, amiúde contraditórias, e que
hoje fazem do processo civil, especialmente, um labirinto inexpugnável.
Uma ministra que não inicie funções com a ânsia de deixar o seu nome apenas no Diário da República
e sem reais mudanças no terreno já seria uma boa notícia para todos
nós. Os sucessos desta nova equipa (como sempre) serão os de todos os
cidadãos, pois a Justiça tem sido, porventura, das áreas em que Portugal
menos tem evoluído nestes pouco mais de 40 anos de democracia.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade do Porto
IN "PÚBLICO"
04/12/15
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