06/12/2015

ANDRÉ LAMAS LEITE

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A justiça penal
no programa de Governo:
esperar para ver

 A Justiça tem sido, porventura, das áreas em que Portugal menos tem evoluído nestes pouco mais de 40 anos de democracia.

Os Programas de Governo são, normalmente, documentos mais ou menos vagos, o que em parte se compreende tendo em conta a necessidade de ajustar o que se prevê ao que se encontra no terreno em cada ministério e à evolução da conjuntura económico-financeira tão volátil nos nossos dias.

Especificamente quanto ao que consta do Programa do XXI Governo Constitucional sobre a justiça penal, saúdo a preocupação com as finalidades sancionatórias tal qual se acham previstas no art. 40.º, n.º 1, do Código Penal e que já se retiram da CRP. Assim, a ressocialização — sempre proposta e nunca imposta encontra nas “casas de saída” uma ideia já antiga e que, com honrosas excepções, nunca saiu do papel e, quando tal sucedeu, tem sido mantida por associações privadas. É uma indeclinável tarefa do Estado, assim como o desiderato de incrementar a rede de actividades produtivas dentro dos estabelecimentos prisionais, em ligação com a comunidade.

Por outro lado, o Governo prepara-se, se bem lemos o programa, para ressuscitar a mediação penal, o que exige uma mudança profunda da Lei n.º 21/2007, de 12/6, no essencial ligando-a à suspensão provisória do processo e não à desistência de queixa, ao acompanhamento efectivo do acordo de mediação pelo MP e à revogação de uma norma que a todos nos envergonha: a de que o/a ofendido/a tenha de apresentar uma nova queixa(?) em situações de inadimplemento do acordo, em violação de questões técnicas básicas e, sobretudo, provocando uma incompreensível vitimação secundária.

Cuidados se exigem em não privatizar a justiça penal e em manter os chamados “meios alternativos de resolução de litígios” em estritos limites, uma vez que o ius puniendi estatal é a melhor garantia de uma justiça penal efectivamente mais justa e não ao dispor de quem tem mais capacidades económicas para negociar a sua liberdade.

Positiva é ainda a necessidade detectada (o que não é novo) de estudar algumas penas de substituição como a prisão por dias livres e o regime de semidetenção e, acrescentamos nós, de incrementar o seu catálogo, sempre dentro de limites que tornem a prevenção geral e especial uma realidade e não uma utopia. Aliás, já defendemos que se foi longe de mais ao permitir, em 2007, que o limite máximo da medida concreta da pena a substituir se elevasse de três para cinco anos, o que sucedeu, no essencial, por razões de poupança do Estado. Do mesmo passo, o elevado número de penas privativas de liberdade cumpridas pela não liquidação da multa exige, mesmo após todas as faculdades (porventura exageradas) de cumprimento desta última, que se lhe possa aplicar a obrigação de permanência na habitação. Também encaramos como vantajosa que esta pena de substituição se possa alargar para medidas até três anos, com a faculdade de o condenado sair para trabalhar ou estudar, em termos mais claros e gerais do que hoje já existe.

O combate à violência doméstica passa por uma abordagem holística, que deve perceber que o Direito Penal não pode ser uma prima ratio do sistema e que, sobretudo, para além da prevenção, tem de se enfocar não só na vítima, mas também no agressor. A “espiral de violência” só pode ser cortada se não proscrevermos este último elemento da relação delitual, o que exige uma parceria com instituições que, no terreno, já intervêm com agressores de violência doméstica ou sexuais. A rede institucional, sobretudo as casas de abrigo, reclama uma maior atenção, pois é, no mínimo, desumano que mulheres (são elas as principais vítimas deste tipo de crime, como é infelizmente sabido) tenham de ser retiradas de perto dos agressores e colocadas em pensões de duvidosa fama, muitas vezes com os seus filhos menores.

O programa para a área da justiça penal e bem não é exagerado em tudo mudar. Fazê-lo seria meio caminho andado para tudo ficar na mesma. Mas gostaria de ver referência a uma eventual limitação da fase de instrução, já defendida por alguns autores, a medidas mais concretas em sede de prova pericial (motivo de grande delonga processual) ou a uma explicitação do que são os “incentivos à produtividade” dos magistrados, pois, se mal arquitectados, podem bulir com fundamentos do Estado de direito. O que não significa note-se que ponha de lado, in limine, outras formas de avaliação do desempenho para além das já existentes inspecções.

Uma incógnita grande é saber o que será, de facto, o “conselho de concertação para o sistema judicial”, defendendo, como outros, que deveria existir um único Conselho para a Justiça, presidido pelo chefe de Estado e com representação de todos os “operadores judiciários” e do Parlamento que, para além de outras funções, definiria as principais linhas estratégicas do sector, em concertação permanente, evitando que a Justiça seja uma “arma política de arremesso” e dando ao sistema algo de que ele necessita e que não tem tido: estabilidade e tempo para implementar e avaliar reformas em catadupa, amiúde contraditórias, e que hoje fazem do processo civil, especialmente, um labirinto inexpugnável.

Uma ministra que não inicie funções com a ânsia de deixar o seu nome apenas no Diário da República e sem reais mudanças no terreno já seria uma boa notícia para todos nós. Os sucessos desta nova equipa (como sempre) serão os de todos os cidadãos, pois a Justiça tem sido, porventura, das áreas em que Portugal menos tem evoluído nestes pouco mais de 40 anos de democracia.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade do Porto

IN "PÚBLICO"
04/12/15

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