“Se ela quiser não é pedofilia, é Amor”.
Não, meus senhores, é crime
Ai a Valentina a fazer aqueles pratos no Masterchef... vagabunda
demais!”. “Pra Valentina entrar no programa deve ter feito uma suruba
com Fogaça e Jacquian”. “Todos nós sonhamos casar com uma mulher assim
desse tipo, nos tempos das nossas avós, elas se casavam com essa idade,
virgem, magra, pura, servindo e cuidando da casa e cozinhando”. “Essa
Valentina vai ficar daquelas secretárias de filme porno”. Sabem quem é
Valentina, a figura feminina que tem gerado dezenas de comentários deste
género nas redes sociais? Passo a explicar: tem 12 anos e é uma das
concorrentes do Masterchef Júnior Brasil. Vivemos numa sociedade doente.
A polémica estalou no Brasil durante os últimos dias e levantou uma
discussão deveras pertinente: a cultura impune de assédio a menores.
Valentina é uma miúda de 12 anos, alta para a idade como tantas outras
meninas, de voz doce e com muita garra quando se atira aos tachos. O seu
sonho é ser chef profissional e não tem sequer idade para ter noção da
gravidade dos comentários que têm sido tecidos a seu respeito, sem
qualquer pudor, nas redes sociais. Mas quando os seus pais perceberam o
que estava a acontecer ficaram chocados. Quiseram tirar a filha do
programa, mas era quase como penalizar uma criança pela atitude doente
dos adultos. Apresentaram queixa. O caso chegou aos media brasileiros e
nunca a discussão sobre a aceitação social de comentários sexuais a
menores esteve tão acesa.
Juliana de Faria, fundadora da associação Think Olga, lançou no Twitter um apelo à hashtag #primeiroassedio.
Em poucas horas, dezenas de utilizadores daquela rede contavam
publicamente a forma como também tinham sido assediadas na infância e
adolescência. Personalidades públicas juntaram-se à iniciativa e
contaram os seus casos. A hashtag #primeiroassedio rapidamente galgou
fronteiras e transformou-se também na internacional #firstharassament.
“Sempre existiu o debate sobre o assédio, mas a Internet veio juntar as
vítimas. Antes não se falava e o assunto morria”, explicou Juliana em
entrevista à BBC. O que temos vindo a discutir com a #primeiroassedio é
que quando falamos de pedofilia as pessoas entendem-na como uma coisa
distante, pesada. Não! As sementes desta barbárie também estão em ações
que parecem pequenas e insignificantes, como um tweet ou uma assobiadela
na rua a uma criança.”
“Lambia-te essa c*+# toda”, disse-me um homem com idade para ser meu pai
Lembro-me
de ter 13 anos quando, ao sair de um autocarro à porta de casa, um
homem me sussurrou a seguinte frase: “Lambia-te essa c*+# toda”. Na
altura eu mal tinha entrado na puberdade e nem sequer conseguia perceber
o cariz sexual da frase. Mas repugnou-me. Estava a começar a tentar
lidar com as alterações do corpo, com as curvas que surgiam e o peito
que crescia a toda a velocidade, e aquela frase fez-me sentir que de a
culpa era desse meu “novo corpo”. Não havia outra explicação para que um
homem com idade para ser meu pai me dissesse tal coisa. Durante algum
tempo escondi o corpo por baixo de camisolas largas e a verdade é que,
tal como as dezenas de mulheres que têm partilhado as suas histórias
publicamente, nunca contei a ninguém. Ultrapassei-o anos mais tarde, mas
era o meu segredo. E garanto-vos: não foi de longe o único. Partilho
esta história tão íntima aqui porque realmente este tema merece ser
debatido. O assédio a meninas é constante e recorrente. Era há vinte
anos e continua a sê-lo agora.
Já há uns meses o Brasil
tinha estado nas bocas do mundo quando um estudo revelou que a palavra
mais procurada em sites pornográficos era “novinhas”. Agora, quando o
escândalo Valentina estalou, aqueles que foram considerados agressores
ainda se tentaram insurgir e começaram por publicar nas redes sociais
frases como “Se ela quiser não é pedofilia, é Amor” e “Se tiver consenso
é pedofilia?”. O grave é que há realmente quem não perceba que uma
menina de 12 anos, por mais que tenha peito grande, curvas acentuadas ou
se vista como uma mulher, não é uma mulher. E não sendo uma mulher
adulta - com total noção do seu corpo, da sua sexualidade e com a
formação de personalidade totalmente desenvolvida para agir em
consciência - não pode dar consenso para tal. A lei assim o prevê.
Infantilização de mulher VS impunidade
Não
há nada de sensual ou de aceitável no adulto que baba pela imagem de
uma “ninfeta” (aka: “menina adolescente voltada para o sexo ou que
desperta desejo sexual”) e a tão badalada Lolita de Nabokov – que parece
ser a eterna comparação das mentes nojentas que perpetuam este tipo de
agressão verbal e física - não era mais do que uma vítima de pedofilia.
Uma ninfeta, ou uma “novinha”, é uma criança. Ponham os paninhos quentes
de lado: estamos a falar de abuso de menores e alguém que faz
comentários do género sobre uma menina é um abusador, um criminoso.
A reflexão deveria ir ainda mais longe, começando pelo facto de vivermos numa sociedade que promove a infantilização da imagem feminina:
por um lado as mulheres continuam a ser incentivadas a manter uma
aparência jovem para se manterem dentro dos ideais de beleza atuais, por
outro, as adolescentes são amplamente incitadas pela cultura pop a
parecerem mulheres, quando muitas vezes ainda não têm mais do que idade
para estarem em casa a brincar com bonecas. Tanto na publicidade, como
na moda, na música ou no cinema, a imagem da mulher-menina vende.
Contudo,
a eterna desculpabilização e a impunidade total do agressor parece-me
ser o cerne da questão. Não se pode culpar a vítima e é isso que ainda
se faz. Quantos de nós, ao falar de meninas e adolescentes que andam de
mini-saia e maquilhagem, já ouvimos a frase: “Depois admiram-se!”. Eu
admiro-me é que este pensamento ainda prevaleça. Atenção: não se pode
culpar uma menina de ser sexualmente provocativa e não é certamente uma
mini-saia ou as formas corporais de adulta que dão legitimidade a quem
quer que seja de ter uma atitude abusiva. A culpa está única e
exclusivamente no adulto que sente e não consegue controlar o desejo por
uma criança ou um adolescente. Algo que, convém relembrar, vai contra
as normas sociais que protegem a infância. E ninguém pode passar essa
fronteira.
IN "EXPRESSO"
13/11/15
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