11/11/2015

CAPICUA

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Néones e souvenirs

O convite apareceu simpático: escrever uma crónica quinzenal na VISÃO. Não hesitei. Padeço de um otimismo militante que beira a inconsciência e tenho a autoestima das infâncias felizes. Acho sempre que é coisa para correr bem e toca de olhar em volta, como quem tem uns óculos novos.
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A realidade está sempre lá, nós é que vamos mudando o espetro da atenção e lá estava eu, de olhos gigantes, à procura do tema da minha primeira crónica! Coincidiu esta excitação com a minha quinzena de férias e passei a reparar em tudo com a frescura de uma primeira vez. Logo no avião, na hora da aterragem, ouve-se o aplauso coletivo e dei por mim a avaliar as reações. Os passageiros que batem palmas aliviados e eufóricos, premiando a destreza do piloto; os que aplaudem com escárnio, divertidos; os que não se manifestam e parecem nem reparar no que se passa, e, finalmente, os que com snobismo desdenham à boca pequena dessa "parolice", supostamente "tuga", que não se usa nos "países civilizados". Já eu, que não costumo aplaudir mas gosto sempre mais da espontaneidade do que do snobismo, passei a achar que talvez devesse começar a fazê-lo, porque afinal, quando eu própria faço o meu trabalho, as pessoas também costumam bater palmas...
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Outra coisa em que reparei foi no enorme perigo, que os grandes pintores, artistas e escritores correm, de virar nome de loja de souvenirs ou mesmo de snack-bar de centro histórico. É que a banalização das homenagens póstumas, no grande caldeirão do turismo cultural urbano de massas, acaba por transformar o nome dos tais grandes génios em néones de baixa categoria, na fachada de pensões de duas estrelas.
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De Picasso a Lorca, tudo serve para vender patatas bravas e ímanes de frigorífico. E sem ponta do tal snobismo, que no parágrafo anterior repudiei, acho que não compensa andar uma vida inteira a brotar genialidade, para ser nome de hostal na Andaluzia.
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Passadas as férias, manteve-se a dura realidade: a repressão política em Angola endurece e está prestes a matar Luaty Beirão, em greve de fome há mais de um mês contra uma prisão preventiva ilegal, baseada numa acusação fantasiosa. E foi claro que a crónica tinha de ser sobre isso e que tinha a obrigação moral de escrever sobre a Liberdade. Eu que, tal como o Luaty, sou rapper e faço uso quotidiano do poder do microfone, aproveitando-o como ferramenta de mudança do mundo, na associação sempre poderosa das palavras com a música...
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Falar sobre a revolta que me causa ver 15 jovens presos por debater um livro, encarcerados em solitárias, há mais de 3 meses, sob acusação de tentativa de golpe de Estado. Como se fosse possível, num país com um regime tão sólido e blindado como o angolano, que uma quinzena de jovens intelectuais, desarmados, conseguisse derrubar o Presidente. Apeteceu-me escrever em caps lock que sinto vergonha pela postura discreta e conveniente do Estado português perante o caso. Escrever que quem pactua com esta oligarquia milionária e corrupta que governa Angola tem as mãos manchadas de sangue, e nem sequer é por causa da repressão política, é mesmo pela maior taxa de mortalidade infantil do mundo (segundo dados da Unicef) e por muitos outros números gritantes de subdesenvolvimento! 
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Ora, tinha eu a crónica mais do que alinhavada e eis que chega Cavaco Silva, insinuando que há partidos com representação parlamentar que são menos legítimos e que não podem fazer parte de soluções governativas! Veio dizer que há uma parte significativa dos eleitores portugueses que têm menos direitos de representação política, apenas porque não gostam da sua cor favorita!?! Fiquei de mau humor. Tinha-me desarrumado a crónica! Foi então que, com o meu melhor sorrisinho maquiavélico, desejei com todas as minhas forças, que, daqui a uns anos, haja uma pensão foleira no Cais do Sodré com um néon fundido a dizer "Hostal Cavaco Silva", mesmo ao lado do "Kebab do Zédú" e dos "Souvenirs Machete", em que se venderão uns belos ímanes do MPLA, por entre capas para a chuva made in China e outros artigos de qualidade.

IN "VISÃO"
05/11/15

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