Esquizofrenia geral
Com a brutal subida de temperatura no clima de tensão que envolve o
Governo grego, os seus parceiros europeus e o FMI, só mesmo por milagre
se teria chegado ontem, na reunião dos ministros das Finanças dos países
do euro, a um qualquer compromisso entre as partes desavindas. A
reunião, considerada quase decisiva, foi desvalorizada por Alexis
Tsipras - que parece definitivamente irredutível e insiste num «rotundo não» às propostas dos credores.
A atmosfera tornou-se praticamente irrespirável nos encontros
negociais enquanto uma forte animosidade pessoal já prevalece sobre os
temas em debate, que cada qual interpreta de forma radicalmente diversa
do que pretende
o interlocutor. É o caso do habitualmente cordato Jean-Claude Juncker
que, depois de ter tentado mostrar-se afectuoso com Tsipras, o acusa
agora, em tom muito zangado, de deturpar o sentido das propostas
veiculadas pela Comissão Europeia.
A verdade, porém, é que há aqui, desde o princípio, um equívoco
irremediável, um caso típico de lost in translation que nenhuma
subtileza semântica fará superar: o que Juncker pretende que Tsipras
entenda - ou seja, que as exigências iniciais da Comissão têm sido
substancialmente suavizadas - é interpretado pelo primeiro-ministro
grego como um sofisma provocatório. E, de facto, atendendo ao conflito
de expectativas de cada uma das partes, parece efectivamente impossível
que os termos da negociação possam resultar num acordo.
Nestas condições, resta aos gregos
persistir na estratégia de esticar a corda até ao limite, ou seja, até
pelo menos ao Conselho Europeu de 25 e 26 de Junho, poucos dias antes de
a Grécia ter de reembolsar 1,6 mil milhões de euros ao FMI. Se isso não
acontecer, a Grécia entrará quase inevitavelmente em bancarrota, com as
imprevisíveis consequências que isso provocará na Europa e fora dela.
Já vimos que não são apenas os europeus que estão profundamente
inquietos com os efeitos desse abalo sísmico. Do outro lado do
Atlântico, os avisos de alarme multiplicam-se. Daí a pressa em antecipar
um plano de emergência visando o controlo do movimento de capitais na
Grécia - a exemplo do que sucedeu em Chipre - para conter danos
maiores.
Só que o Governo grego não parece estar pelos ajustes e, em desespero
de causa, aposta num acordo de última hora que satisfaça as suas
reivindicações de princípio: evitar que o país fique refém, por tempos
infindos, do espartilho da austeridade e de uma dívida que, nas
condições actuais, tenderá a agravar-se até às calendas. Coincidência
curiosa: numa visita esta semana a Atenas, o chanceler austríaco, Werner
Faymann, afirmou estar em desacordo com as medidas propostas pelos
credores que não deviam «fazer aumentar o desemprego e a pobreza».
Vive-se em plena esquizofrenia que afecta todos, a começar por uma
instituição já atingida há longo tempo pela doença: o Fundo Monetário
Internacional. Ainda esta semana, o FMI publicou um estudo onde
considera que o crescimento económico mundial está a ser prejudicado
pelo agravamento das desigualdades.
Segundo o documento, «a flexibilidade do mercado de trabalho
beneficia os ricos e reduz o preço de negociação dos trabalhadores de
mais baixos rendimentos». Além disso, o «papel redistributivo da
política fiscal pode ser reforçado através de uma maior importância para
os impostos sobre a fortuna e a propriedade, de uma tributação mais
progressiva dos rendimentos, da redução das oportunidades para a fuga
aos impostos, de uma melhor escolha dos benefícios sociais».
Ou seja: é o próprio FMI que diz uma coisa e faz o contrário,
contestando as suas próprias receitas nos países intervencionados, como
Portugal, onde ainda recentemente defendia a flexibilidade do mercado de
trabalho no sentido oposto à filosofia do relatório citado. Como é que o
FMI não contratou ainda uma equipa de psiquiatras reputados para a
avaliar os motivos da sua esquizofrenia?
Mas o FMI terá ido mais longe, porventura, no caso da Grécia: segundo
o próprio Tsipras, o FMI «tomou abertamente uma posição de apoio à
reestruturação da dívida, enquanto os outros insistem em medidas duras e
deixaram de lado a questão da reestruturação». Aparentemente, o chefe
do Governo estaria a apresentar o FMI como exemplo positivo às
instituições europeias. Desenganem-se.
Numa reunião com deputados e ministros do Syriza, Tsipras acusou o
FMI de responsabilidade «criminal» e o BCE de contribuir para a «asfixia
financeira» do país. A esquizofrenia é contagiosa e a crise grega
mostra que ninguém consegue escapar-lhe. Uma coisa parece certa: todos
pagarão por isso.
IN "SOL"
22/06/15
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