21/06/2015

MANUEL LOFF

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A Grécia e as 
lições da austeridade

É muito curiosa esta mescla de discurso tecnocrático e de moralismo rançoso, que descreve os gregos como uma família gastadora e desorganizada, habituada a viver à custa da generosidade alheia.

Prossegue o braço de ferro entre o governo grego do Syriza e a troika de topo do capitalismo mundial. Bruxelas, o FMI e Berlim não querem reconhecer o direito a mudar de política a um governo democraticamente eleito depois de derrotar os anteriores interlocutores da troika, responsáveis por uma política económica que levou a Grécia à catástrofe.

Para Lagarde, Merkel e Juncker (ou o pobre Passos, fazendo-se passar por credor rico), os gregos podem votar o que quiser desde que os seus governantes os continuem a esmifrar para pagar uma dívida que não contraíram e que só se agravou desde o primeiro dos resgates. Bem pode o insuspeito Financial Times garantir que as propostas do FMI agravarão a recessão e aumentarão para 200% do PIB a dívida grega, que a ameaça agora é: se não aceita, sai do euro, e se sai do euro, sai da UE (Martin Schulz, entrevista ao Guardian, 17.6.2015) — tese curiosa, já que 9 dos 28 países da UE não estão no euro... A chantagem continua, ainda que não tenha conseguido, até agora, esboroar o apoio popular maioritário de que o governo Tsipras dispõe. Mas é esse o objetivo: desacreditar o governo grego, barrar a possibilidade de contágio a outros países, impedir que se rompa com o euroausteritarismo liberal! 

Há anos que esta discussão das dívidas (que forçaram a transformar em) públicas se tem feito como se fosse natural, e desejável, que ficasse restrita aos técnicos, aos especialistas, coisas para funcionário europeu ou do FMI, de que só entendem uns poucos economistas. Ou seja, o que sempre acontece com as políticas europeias. Ao cidadão comum solta-se umas tiradas moralistas (“os gregos mentiram!”, “os gregos vivem acima das suas possibilidades: um país corrupto do 3.º Mundo não pode ter uma segurança social à alemã!”), com um toque pseudo-antropológico (“as relações sociais na Grécia estão fundadas sobre o favor, a cunha, a fraude fiscal”) cuja base não é outra que a generalização de preconceitos dignos da conversa de turista rico com toques coloniais. É muito curiosa esta mescla de discurso tecnocrático e de moralismo rançoso, que descreve os gregos como uma família gastadora e desorganizada, habituada a viver à custa da generosidade alheia. Na Grécia, como em Portugal (e em Espanha e na Irlanda), tentou-se “esconder a verdade do público representando uma situação na qual o resgate se apresentou como benéfico para a Grécia, enquanto se promoveu um relato que retratava a população como culpada das suas próprias malfeitorias.”

Quem o escreve é a Comissão da Verdade sobre a Dívida Pública nomeada em abril pela presidência do Parlamento da Grécia, constituída por peritos internacionais (ou julgar-se-á que “peritos” são só os FMI e do BCE?) e que apresentou esta semana um relatório preliminar. Contrariando todo o discurso dos nossos governos austeritários, que entendem que não há nada que discutir quanto à legitimidade da dívida (“há que a pagar, ponto final!”), o Parlamento grego criou uma comissão “com o mandato de investigar sobre a criação e o aumento da dívida pública, a forma e as razões pelas quais ela foi contraída, e o impacto que as condições associadas aos empréstimos teve sobre a economia e a população.”

Concluiu ela que o crescimento da dívida pública grega desde os anos 80 “não se deveu a um gasto público excessivo, que se manteve abaixo do gasto público doutros países da eurozona, mas sim ao pagamento de juros extremamente altos aos credores, um excessivo (...) gasto militar, perda de receita fiscal devido aos fluxos ilícitos de capital, à recapitalização estatal dos bancos privados e aos desequilíbrios criados (…) na conceção da própria União Monetária.” “O uso do dinheiro” que adveio dos dois resgates (2010 e 2012) “foi estritamente ditado pelos credores, sendo revelador que menos de 10% destes fundos se tenham destinado ao gasto corrente do governo.” Em que foram gastos, então? No resgate de bancos privados gregos e europeus: a troika passou dinheiro à Grécia (a juros, claro) para que esta pagasse aos bancos (mais juros). E dessa forma, a Grécia (como Portugal) ficou sob o protetorado de instituições internacionais de que fazem parte mas onde a sua voz não conta para nada, cedendo-lhes toda a sua soberania económica e, automaticamente, toda a sua soberania nacional! Por água abaixo vai a tese, tantas vezes repetida por Teixeira dos Santos, Gaspar e a ministra dos swaps, de que os empréstimos servem para pagar pensões e a saúde pública, pelo que devemos estar todos agradecidos aos nossos benfeitores...

Recorda esta Comissão da Verdade que “vários argumentos legais permitem que um Estado repudie unilateralmente a sua dívida” quando ela é “ilegal, odiosa e ilegítima.” E cita cinco: (1) “a má fé dos credores”, que sabiam que os cortes nos salários, na saúde, na educação e na segurança social “afetariam diretamente as condições de vida e violariam os direitos humanos, que a Grécia e os seus sócios estão obrigados a respeitar, proteger e promover no quadro do direito interno, regional e internacional”, que estabelece, pelo contrário, (2) “a preeminência dos direitos humanos sobre os acordos assinados pelos governos anteriores com os credores ou a troika”. Ao contrário do que era sua obrigação legal, o antigo governo grego e os credores “evitaram avaliar os impactos nos direitos humanos do ajustamento macroeconómico e a consolidação fiscal”.

(3) “Os acordos contêm cláusulas abusivas, coagindo a Grécia a ceder aspetos significativos da sua soberania”. Por exemplo, ao se ter imposto a “lei inglesa como legislação aplicável” em caso de litígio com os credores, o que permite “evitar invocar a Constituição grega e as obrigações internacionais sobre direitos humanos.” Isto significa que “as partes contratantes atuaram de má fé” e (4) “violaram diretamente a Constituição grega”, pelo que “os acordos não são válidos”.

Por último, (5) o “direito internacional [reconhece que] os Estados [podem] tomar medidas contra os atos ilegais por parte dos seus credores que firam a sua soberania fiscal (…) e violem a autodeterminação económica e os direitos humanos fundamentais.”

Estados que cobrem a impunidade da banca com recursos dos mais pobres. Para melhor os controlar, regime de protetorado internacional. Se a sociedade se rebela, chantagem e esmagamento da vontade democrática. Eis as lições da austeridade e do caso grego.

IN "PÚBLICO"
20/06/15

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