A Grécia e as
lições da austeridade
É muito curiosa esta mescla de discurso tecnocrático e de moralismo rançoso, que descreve os gregos como uma família gastadora e desorganizada, habituada a viver à custa da
generosidade alheia.
Prossegue o braço de ferro entre o governo grego do Syriza e a troika
de topo do capitalismo mundial. Bruxelas, o FMI e Berlim não querem
reconhecer o direito a mudar de política a um governo democraticamente
eleito depois de derrotar os anteriores interlocutores da troika, responsáveis por uma política económica que levou a Grécia à catástrofe.
Para Lagarde,
Merkel e Juncker (ou o pobre Passos, fazendo-se passar por credor rico),
os gregos podem votar o que quiser desde que os seus governantes os
continuem a esmifrar para pagar uma dívida que não contraíram e que só
se agravou desde o primeiro dos resgates. Bem pode o insuspeito Financial Times
garantir que as propostas do FMI agravarão a recessão e aumentarão para
200% do PIB a dívida grega, que a ameaça agora é: se não aceita, sai do
euro, e se sai do euro, sai da UE (Martin Schulz, entrevista ao Guardian, 17.6.2015) —
tese curiosa, já que 9 dos 28 países da UE não estão no euro... A
chantagem continua, ainda que não tenha conseguido, até agora, esboroar o
apoio popular maioritário de que o governo Tsipras dispõe. Mas é esse o
objetivo: desacreditar o governo grego, barrar a possibilidade de
contágio a outros países, impedir que se rompa com o euroausteritarismo
liberal!
Há anos que esta discussão das dívidas (que
forçaram a transformar em) públicas se tem feito como se fosse natural, e
desejável, que ficasse restrita aos técnicos, aos especialistas, coisas
para funcionário europeu ou do FMI, de que só entendem uns poucos
economistas. Ou seja, o que sempre acontece com as políticas europeias.
Ao cidadão comum solta-se umas tiradas moralistas (“os gregos
mentiram!”, “os gregos vivem acima das suas possibilidades: um país
corrupto do 3.º Mundo não pode ter uma segurança social à alemã!”), com
um toque pseudo-antropológico (“as relações sociais na Grécia estão
fundadas sobre o favor, a cunha, a fraude fiscal”) cuja base não é outra
que a generalização de preconceitos dignos da conversa de turista rico
com toques coloniais. É muito curiosa esta mescla de discurso
tecnocrático e de moralismo rançoso, que descreve os gregos como uma
família gastadora e desorganizada, habituada a viver à custa da
generosidade alheia. Na Grécia, como em Portugal (e em Espanha e na
Irlanda), tentou-se “esconder a verdade do público representando uma
situação na qual o resgate se apresentou como benéfico para a Grécia,
enquanto se promoveu um relato que retratava a população como culpada
das suas próprias malfeitorias.”
Quem o escreve é a Comissão da
Verdade sobre a Dívida Pública nomeada em abril pela presidência do
Parlamento da Grécia, constituída por peritos internacionais (ou
julgar-se-á que “peritos” são só os FMI e do BCE?) e que apresentou esta
semana um relatório preliminar.
Contrariando todo o discurso dos nossos governos austeritários, que
entendem que não há nada que discutir quanto à legitimidade da dívida
(“há que a pagar, ponto final!”), o Parlamento grego criou uma comissão
“com o mandato de investigar sobre a criação e o aumento da dívida
pública, a forma e as razões pelas quais ela foi contraída, e o impacto
que as condições associadas aos empréstimos teve sobre a economia e a
população.”
Concluiu ela que o crescimento da dívida pública grega
desde os anos 80 “não se deveu a um gasto público excessivo, que se
manteve abaixo do gasto público doutros países da eurozona, mas sim ao
pagamento de juros extremamente altos aos credores, um excessivo (...)
gasto militar, perda de receita fiscal devido aos fluxos ilícitos de
capital, à recapitalização estatal dos bancos privados e aos
desequilíbrios criados (…) na conceção da própria União Monetária.” “O
uso do dinheiro” que adveio dos dois resgates (2010 e 2012) “foi
estritamente ditado pelos credores, sendo revelador que menos de 10%
destes fundos se tenham destinado ao gasto corrente do governo.” Em que
foram gastos, então? No resgate de bancos privados gregos e europeus: a troika passou
dinheiro à Grécia (a juros, claro) para que esta pagasse aos bancos
(mais juros). E dessa forma, a Grécia (como Portugal) ficou sob o
protetorado de instituições internacionais de que fazem parte mas onde a
sua voz não conta para nada, cedendo-lhes toda a sua soberania
económica —
e, automaticamente, toda a sua soberania nacional! Por água abaixo vai a
tese, tantas vezes repetida por Teixeira dos Santos, Gaspar e a
ministra dos swaps, de que os empréstimos servem para pagar
pensões e a saúde pública, pelo que devemos estar todos agradecidos aos
nossos benfeitores...
Recorda esta Comissão da Verdade que “vários
argumentos legais permitem que um Estado repudie unilateralmente a sua
dívida” quando ela é “ilegal, odiosa e ilegítima.” E cita cinco: (1) “a
má fé dos credores”, que sabiam que os cortes nos salários, na saúde, na
educação e na segurança social “afetariam diretamente as condições de
vida e violariam os direitos humanos, que a Grécia e os seus sócios
estão obrigados a respeitar, proteger e promover no quadro do direito
interno, regional e internacional”, que estabelece, pelo contrário, (2)
“a preeminência dos direitos humanos sobre os acordos assinados pelos governos anteriores com os credores ou a troika”.
Ao contrário do que era sua obrigação legal, o antigo governo grego e
os credores “evitaram avaliar os impactos nos direitos humanos do
ajustamento macroeconómico e a consolidação fiscal”.
(3) “Os
acordos contêm cláusulas abusivas, coagindo a Grécia a ceder aspetos
significativos da sua soberania”. Por exemplo, ao se ter imposto a “lei
inglesa como legislação aplicável” em caso de litígio com os credores, o
que permite “evitar invocar a Constituição grega e as obrigações
internacionais sobre direitos humanos.” Isto significa que “as partes
contratantes atuaram de má fé” e (4) “violaram diretamente a
Constituição grega”, pelo que “os acordos não são válidos”.
Por último, (5) o “direito internacional
[reconhece que] os Estados [podem] tomar medidas contra os atos ilegais
por parte dos seus credores que firam a sua soberania fiscal (…) e
violem a autodeterminação económica e os direitos humanos fundamentais.”
Estados
que cobrem a impunidade da banca com recursos dos mais pobres. Para
melhor os controlar, regime de protetorado internacional. Se a sociedade
se rebela, chantagem e esmagamento da vontade democrática. Eis as
lições da austeridade e do caso grego.
IN "PÚBLICO"
20/06/15
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