O burocrata
Sampaio da Nóvoa
A notícia vinha na última edição do jornal Sol: Sampaio da
Nóvoa foi o primeiro signatário de um grupo de moradores de Oeiras que
tentou por duas vezes, em 2004 e em 2005, embargar as obras de ampliação
de um lar de acolhimento para adultos com paralisia cerebral. Essas
obras tinham como objectivo construir mais quartos e um ginásio para
fisioterapia, mas os moradores interpuseram duas providências cautelares
argumentando que tal ampliação iria alterar “o equilíbrio” entre os
prédios da Urbanização Nova Oeiras, causando “grandes prejuízos” a quem
vivia na zona, “quer em termos de vistas, quer de fruição de jardins e
de redução de espaços de lazer, de passeios pedonais e de caminhos de
passagem”.
Os embargos
levaram por duas vezes à suspensão das obras, e das duas vezes foram
considerados improcedentes pelos tribunais. Até o Provedor de Justiça
foi instado a pronunciar-se, mas também ele tomou o lado da Associação
Portuguesa de Paralisia Cerebral e da autarquia de Oeiras. A própria
associação decidiu processar depois os moradores, exigindo uma
indemnização de cerca de 100 mil euros pelos atrasos nas obras. Contudo,
Isaltino Morais, então presidente da câmara, e sempre magnânimo, acabou
por promover um acordo entre as partes, assumindo a autarquia 60% dos
danos causados pelos embargos.
Este
é um caso que parece muito desequilibrado quanto aos valores em jogo:
de um lado, uma associação de paralisia cerebral que quer melhorar as
suas instalações; do outro, uma comissão de moradores que quer manter a
vista das casas e o tamanho do jardim. Mas o que me chamou a atenção não
foi tanto a notícia em si, porque a partir do momento em que Sampaio da
Nóvoa se lança numa candidatura à presidência da República é natural
que estes casos comecem a aparecer nos jornais (ainda que soprados por
partes interessadas, são parte de um escrutínio político que faz parte
das regras democráticas), mas, sim, a resposta que o candidato a Belém
deu ao jornal Sol para justificar as suas acções.
E
a resposta foi esta: segundo Sampaio da Nóvoa, o litígio com a
Associação Portuguesa de Paralisia Cerebral nada teve a ver “com a
função final do edifício”. Apenas e tão-só “com o exercício do dever de
zelar pela legalidade de uma operação que envolvia cedência de espaço
público a entidades privadas”. Ora, parece-me extraordinário que um
homem dado a discursos tão empolgantes, incontinente citador de
trovadores e especialista em “fazer pontes com pessoas e instituições” e
“arbitrar consensos num clima de confiança” (palavras suas na
apresentação da candidatura), troque subitamente o idealismo mais
elevado pela mais deslavada resposta burocrática só porque está em causa
o jardim ao lado de sua casa.
Para um verdadeiro sonhador, “a
função final” de um edifício não pode ser igual ao litro. Para um
autêntico utopista, um espaço ser usado para a fisioterapia de doentes
com paralisia cerebral não pode ser a mesma coisa do que ser utilizado
para erguer uma nova sede da Goldman Sachs ou para edificar a mansão do
sobrinho taxista de Isaltino. Eu sei que há quem desvalorize estas
notícias, apelidando-as de “baixa política”. Mas eu, que sou pouco
utopista, gosto de cotejar a teoria com a prática. E este é um daqueles
casos — e, sobretudo, uma daquelas justificações —
que revelam muito mais sobre a personalidade de quem se apresenta às
eleições presidenciais do que dez discursos emproados, cheios de
citações antológicas de Sophia e de José Afonso.
IN "PÚBLICO"
23/06/15
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