29/06/2015

JOÃO MIGUEL TAVARES

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O burocrata 
Sampaio da Nóvoa

A notícia vinha na última edição do jornal Sol: Sampaio da Nóvoa foi o primeiro signatário de um grupo de moradores de Oeiras que tentou por duas vezes, em 2004 e em 2005, embargar as obras de ampliação de um lar de acolhimento para adultos com paralisia cerebral. Essas obras tinham como objectivo construir mais quartos e um ginásio para fisioterapia, mas os moradores interpuseram duas providências cautelares argumentando que tal ampliação iria alterar “o equilíbrio” entre os prédios da Urbanização Nova Oeiras, causando “grandes prejuízos” a quem vivia na zona, “quer em termos de vistas, quer de fruição de jardins e de redução de espaços de lazer, de passeios pedonais e de caminhos de passagem”.

Os embargos levaram por duas vezes à suspensão das obras, e das duas vezes foram considerados improcedentes pelos tribunais. Até o Provedor de Justiça foi instado a pronunciar-se, mas também ele tomou o lado da Associação Portuguesa de Paralisia Cerebral e da autarquia de Oeiras. A própria associação decidiu processar depois os moradores, exigindo uma indemnização de cerca de 100 mil euros pelos atrasos nas obras. Contudo, Isaltino Morais, então presidente da câmara, e sempre magnânimo, acabou por promover um acordo entre as partes, assumindo a autarquia 60% dos danos causados pelos embargos.

Este é um caso que parece muito desequilibrado quanto aos valores em jogo: de um lado, uma associação de paralisia cerebral que quer melhorar as suas instalações; do outro, uma comissão de moradores que quer manter a vista das casas e o tamanho do jardim. Mas o que me chamou a atenção não foi tanto a notícia em si, porque a partir do momento em que Sampaio da Nóvoa se lança numa candidatura à presidência da República é natural que estes casos comecem a aparecer nos jornais (ainda que soprados por partes interessadas, são parte de um escrutínio político que faz parte das regras democráticas), mas, sim, a resposta que o candidato a Belém deu ao jornal Sol para justificar as suas acções.

E a resposta foi esta: segundo Sampaio da Nóvoa, o litígio com a Associação Portuguesa de Paralisia Cerebral nada teve a ver “com a função final do edifício”. Apenas e tão-só “com o exercício do dever de zelar pela legalidade de uma operação que envolvia cedência de espaço público a entidades privadas”. Ora, parece-me extraordinário que um homem dado a discursos tão empolgantes, incontinente citador de trovadores e especialista em “fazer pontes com pessoas e instituições” e “arbitrar consensos num clima de confiança” (palavras suas na apresentação da candidatura), troque subitamente o idealismo mais elevado pela mais deslavada resposta burocrática só porque está em causa o jardim ao lado de sua casa.

Para um verdadeiro sonhador, “a função final” de um edifício não pode ser igual ao litro. Para um autêntico utopista, um espaço ser usado para a fisioterapia de doentes com paralisia cerebral não pode ser a mesma coisa do que ser utilizado para erguer uma nova sede da Goldman Sachs ou para edificar a mansão do sobrinho taxista de Isaltino. Eu sei que há quem desvalorize estas notícias, apelidando-as de “baixa política”. Mas eu, que sou pouco utopista, gosto de cotejar a teoria com a prática. E este é um daqueles casos — e, sobretudo, uma daquelas justificações que revelam muito mais sobre a personalidade de quem se apresenta às eleições presidenciais do que dez discursos emproados, cheios de citações antológicas de Sophia e de José Afonso.

IN "PÚBLICO"
23/06/15


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