O que eles inventam
À medida que cai o segredo de justiça, começa a tornar-se pública a injustiça que fizeram a José Sócrates. Há dias, alguns media
sem princípios divulgaram, excitadíssimos, pedaços das "escutas"
telefónicas ao ex-primeiro-ministro. O objectivo, presume-se, era o de
confirmar a culpa deste nas trapalhadas de que é suspeito. No máximo,
sugeriram involuntariamente a respectiva inocência. Passemos aos factos.
As
conversas em causa incluem o que se presume ser uma série de nomes de
código para a palavra "dinheiro", o dinheiro de José Sócrates que José
Sócrates requisitava com regularidade ao amigo de infância Carlos Santos
Silva, alegadamente a ama-seca das verbas. Dado que a má vontade
impera, ninguém no Ministério Público colocou a possibilidade de o
código não existir e os termos utilizados serem referências literais.
Quando
por exemplo José pede a Carlos para "trazer um bocadinho daquela coisa
que gosto muito" há que admitir que, à altura, Carlos se encontrasse em
Tentúgal e a encomenda em questão se limitar a meia dúzia de pastéis.
Ou, para não sairmos da região Centro, Carlos andaria pela Bairrada e
tudo se resumiria a duas sandes de leitão. Se também me escutar os
telefonemas, o MP sabe as vezes que isso já me aconteceu.
Quando
José pede a Carlos os "livros do Duda", é para mim claro tratar-se de
uma alusão às obras do prestigiado ensaísta Eduardo Lourenço, outro
amigo do antigo governante, visita pontual do presídio de Évora e um
académico conhecido por procurar em vão a identidade nacional e terminar
cada frase com a pergunta "Não é?" Só por sorte nunca liguei a
solicitar nada de semelhante.
E quanto às "fotocópias",
"documentos" e "dossiers" que José encarrega Carlos de providenciar, é
obrigatório deduzir que constituem petit noms para o vil metal?
É assim tão estranho que um político de carreira e um erudito da
Sorbonne se rodeie em permanência de papelada solene e sortida? Alguém
acredita nisto?
Não. Nem sequer as forças que se encontram por
detrás de uma óbvia conspiração para silenciar um homem incómodo - em
inúmeros sentidos. Mesmo o "guito" interceptado numa conversa de Carlos é
capaz de ter sido usado como diminutivo de "gás" (ver dicionário), numa
situação em que o amigo de infância se deparasse com o tanque do carro
vazio.
Aos poucos, percebe-se que o MP não possui quaisquer
indícios que incriminem José Sócrates e recorre a puros delírios. E o
desespero evidencia-se no momento em que, após a desastrada história da
linguagem cifrada, se lançou para aí a tese de que José Sócrates não
escreveu A Confiança no Mundo, cabendo a tarefa a um professor
indistinto. Mais um tiro no pé. Ao acusar José Sócrates, o MP apenas lhe
confere maior grandeza: sempre duvidei de que um indivíduo daquele
gabarito intelectual assinasse tamanha porcaria. Não duvido é de que, do
alto da sua inabalável ética, ele mandasse comprar quase todos os
exemplares para poupar os leitores à ironia de acabarem torturados
enquanto liam um texto sobre tortura. Citando um recente hino de
homenagem: obrigado, José Sócrates - podem dizer, podem falar, podem
inventar que ele não vai mudar.
Terça-feira, 24 de Março
Extremismos
Não
importa que as diferenças que as separam (a imigração, só e só até
certo ponto) sejam muito menos do que as semelhanças (a aversão ao
capitalismo, à liberdade, aos EUA, a Israel e no fundo ao Ocidente em
geral): ao contrário das vitórias ou meias-vitórias da extrema-esquerda,
que prometem sempre regenerar a Europa, as vitórias ou meias-vitórias
da extrema-direita ameaçam sempre destruir a Europa.
Porém, este
nem sequer é o maior mistério com que se deparam os infelizes que seguem
a actualidade pelos "telejornais". Enigma a sério é o facto de os
eleitores inquiridos nas televisões jamais terem votado no partido
"racista" e "xenófobo" que acaba de conseguir vinte ou trinta por cento
nas urnas. Veja-se por exemplo o recente caso francês, no qual cada
transeunte surgido nos noticiários se mostra preocupadíssimo com a
ascensão da Frente Nacional, aliás iminente para aí desde 2002. Onde
estão os cidadãos que possibilitaram a dita ascensão? À semelhança do
Yeti, nunca ninguém os viu, ou se os viu é incapaz de provar a
respectiva existência.
Das duas, uma: ou os simpatizantes da FN
habitam em catacumbas, saindo à luz do dia exclusivamente para depositar
o voto, ou todos os actos eleitorais favoráveis à extrema-direita são
uma gigantesca fraude, que por insondáveis motivos as autoridades deixam
passar impune. Também há a hipótese de boa parte do jornalismo andar de
rastos, mas isso já me parece demasiado rebuscado.
Sábado, 28 de Março
A porta dos fundos
É
fundamental que os desastres aéreos sejam investigados com minúcia. Mas
nem assim se justifica a enxurrada de palpites posteriores à queda do
A320 nos Alpes. E, por uma vez, o frenesim das nossas televisões foi um
sossego quando comparado com a rédea solta da CNN, por exemplo, em que
no meio de dias de emissão ininterrupta espreitei duas longas
reportagens sobre a porta (a porta!) do cockpit dos Airbus.
Para cúmulo, depois dos especialistas em aviação, vieram hordas de
psicólogos explicar porque é que as pessoas, pilotos incluídos, sofrem
de depressão e de instintos suicidas. Conheço pelo menos um motivo.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
29/03/15
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