Barrigas e peitos
de aluguer
A vida moderna está cheia de perigos. Isto é o que deve ter pensado Carrie Bradshaw, a personagem da série televisiva O Sexo e a Cidade,
quando, num encontro casual nas ruas de Nova Iorque com um casal de
gays, estes lhe propuseram o fornecimento de um óvulo. Queriam ter
filhos, de espermatozóides não tinham falta, a barriga de aluguer já
estava contratada e Carrie, achavam, produzia óvulos de boa qualidade. A
proposta terminou com a entrega a Carrie do cartão de um deles: a
escritora que lhes ligasse se afinal resolvesse alinhar.
Bom, tanto pragmatismo no meio da azáfama nova-iorquina tira
romantismo à ideia de produção de descendência. Tal como as notícias dos
profícuos dadores de esperma que acabam transmitindo o seu sorriso a
largas dezenas de filhos. Ou a clínica de esperma dinamarquesa que tem
exportado ‘bebés vikings’ para todo o mundo. Ou os filhos do esperma
anónimo (no caso da Grã-Bretanha, não anónimo) que em adultos vão à
procura de quem lhes deu metade do DNA.
Mas, em boa verdade, uma gravidez resultante de um preservativo que
se rompeu num caso de uma noite também não é romântica. E um casal com
problemas de fertilidade que se dedica mês após mês ao método
tradicional de conceção de crianças acaba usando mais teimosia e
voluntarismo do que desejo ou romantismo. Mais: o casamento por amor é
uma realidade com pouco mais de um século e sempre houve numerosos
filhos fora do casamento; não vale a pena exigirmos agora purismos às
conceções que quantas vezes ocorreram distantes do ideal.
Estas questões do início da vida são propensas às angústias éticas.
Para mim estes espermatozóides e óvulos por encomenda são a fronteira
nebulosa sobre a qual ainda não tenho opinião definitiva. Manipulações
que coloquem o ADN de dois homens no mesmo espermatozóide ou de duas
mulheres no mesmo óvulo assustam-me. Em qualquer caso, havendo tantas
crianças abandonadas e desamadas no mundo, simpatizo mais com a adoção
(que resolve os problemas de crianças já existentes) do que com métodos
em que um dos progenitores será um fantasma.
Não vale a pena, no entanto, dar uma de Dolce & Gabbana e
equiparar todas as situações em que os filhos não resultam do
tradicional boy meets girl e etc. A fertilização in vitro é,
para mim e acautelando-se o número e o destino dos embriões, um método
aceitável para resolver casos de infertilidade. As barrigas de aluguer –
de que se falou muito por estes dias – também. E, tirando as questões
sanitárias que envolvam proteção do bebé, não sei por que terá o estado
de se envolver neste processo, autorizando ou restringindo.
Para a futura criança e adolescente e adulto, não vislumbro que faça
confusão ter-se alojado nove meses numa barriga que não a da sua mãe.
Parece-me mais estranho e frio estar meses numa incubadora. E, lá está,
mais perturbador ser filho do tal esperma anónimo.
Para a mulher que aluga o útero, caber-lhe-á decidir se é ou não uma
ocorrência que lhe ultraje o corpo e a consciência, não necessita para
isso de ajuda alheia (e só uma inocência própria de Adão e Eva antes da
serpente – para nos mantermos nas metáforas da Criação – pode supor que o
legislador seja inspiração para qualquer decisão de vida). Não é uma
situação em que eu me quisesse colocar, mas o fim de uma gravidez com
barriga de aluguer é nobre (permitir a duas pessoas terem um filho que
de outra forma não teriam) e, se acompanhada, não causa transtornos à
saúde da mãe. Não é o mesmo que vender um rim (mantém-se todo o sistema
reprodutivo) ou, como é comum na China, vender sangue (em condições
lúgubres que geralmente terminam com os vendedores seropositivos).
Eu tive duas gravidezes e adorei todo o processo, mesmo com o
cansaço, os irritantes quilos a mais, os sobressaltos, o repouso
obrigatório nos últimos dias da segunda gravidez. Vivi as gravidezes
imensamente feliz e a transbordar de emoções fortes a cada pontapé ou
ecografia. Mas não vejo necessidade de sacralizar a gravidez. Há
mulheres que odeiam estar grávidas, outras passam meses em repouso
absoluto e desesperam, outras vivem com um objetivo último de não ter um
grama a mais no minuto a seguir ao parto.
E a sacralização da gravidez – que, cruz credo, não pode ser de
substituição – é tanto mais curiosa quanto durante séculos largos
convivemos, com bonomia generalizada (incluindo a da Igreja), com as
amas de leite (pagas, evidentemente). Ah, não tem nada a ver, dir-me-ão.
Tem, tem.
Eu amamentei os meus filhos durante, no total, vinte e dois meses –
experiência deslumbrante e deliciosa. E estou nas melhores condições
para garantir que ter um bebé nos braços, alimentando-se no meu mamilo,
de uma substância que o meu corpo produz (e que requer tantos cuidados
na alimentação e na medicação como durante a gravidez – ainda não estou
em paz face à privação de chá a que me submeti nestes períodos) e com as
hormonas alegres com a produção de leite, não é, de todo, menos íntimo e
visceral que ter um bebé na barriga. De resto – como sabe qualquer
pessoa que tenha passado os olhos por um livro sobre maternidade –
depois da gravidez (ou seja, a gravidez nem sempre garante), a mãe
precisa de criar laços com o seu bebé. (Algumas mulheres assumem até que
o amor pelos seus bebés não foi imediato depois do parto.) E a forma
mais eficaz (não a única) é a amamentação.
O meu ponto? Não é mais mãe quem carrega no útero do que quem
amamenta e a humanidade há muito que convive com mães de amamentação de
substituição. E ainda mais outro ponto: não temos de nos meter a regular
os corpos das outras pessoas para salvar nada mais do que as nossas
suscetibilidades.
IN "OBSERVADOR"
25/03/15
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