01/03/2015

ALFREDO BARROSO

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Por que razão decidi
desfiliar-me do PS

António nunca devia ter dado este passo por uma questão de coerência e dignidade, e por respeito pelas centenas de milhares de desempregados e pelos milhões de portugueses no limiar da pobreza

1. António Costa, secretário-geral do PS, tem acumulado nas últimas semanas declarações que, a meu ver, põem em causa a credibilidade do PS como principal partido de oposição. 

O secretário-geral do PS – confesso que, hoje, tenho muita dificuldade em escrever por extenso Partido Socialista – já declarou, nomeadamente, que considera o «incontornável» advogado de negócios António Vitorino um excelente candidato a PR. Este ainda não disse que não, mas, entretanto, já aceitou ser presidente da assembleia geral da «chinesíssima» EDP (mais um «tacho» na privada) e, portanto, membro do respectivo conselho geral, presidido pelo «incontornável» Eduardo Catroga. 
Eu diria – para que a imagem do actual PS ficasse completa – que agora só faltaria António Costa apoiar a candidatura do «incontornável» Jorge Coelho ao cargo de futuro primeiro-ministro. 

2. Todavia, o passo fatal que António Costa nunca devia ter dado foi admitir que o país está hoje numa situação «bastante diferente daquela em que estava há quatro anos» – ou seja, para melhor, porque, apesar da sua ambiguidade aparente, a declaração não admite outra interpretação. 

E digo que António nunca devia ter dado este passo por uma questão de coerência e dignidade, e por respeito pelas centenas de milhares de desempregados e pelos milhões de portugueses no limiar da pobreza, vítimas da brutal política de austeridade levada a cabo, com crueldade e insensibilidade, pelo governo de direita ultraliberal de Passos Coelho e Paulo Portas, com a conivência de Cavaco Silva. 

3. A afirmação do actual secretário-geral do PS (o anterior, António José Seguro, deve estar a rir de mim a bandeiras despregadas) foi proferida há poucos dias, em 19 de Fevereiro, no Casino da Póvoa, perante uma plateia de chineses radicados em Portugal, a pretexto da celebração do Ano Novo Chinês – o Ano da Cabra, caramba! 

Depois de elogiar «a relação e forma extraordinária como a comunidade chinesa se tem integrado» no nosso país, o actual presidente da Câmara Municipal de Lisboa reconheceu o «apoio» que «os chineses e os investidores chineses» deram nestes últimos anos a Portugal. 

Palavra de António Costa: «Como nós dizemos em Portugal, os amigos são para as ocasiões. E numa ocasião difícil para o país, em que muitos não acreditaram que o país tinha condições para enfrentar e vencer a crise, a verdade é que os chineses, os investidores chineses, disseram ‘presente’, vieram e deram um grande contributo para que Portugal pudesse estar hoje na situação em que está, bastante diferente daquela em que estava há quatro anos atrás». E agradeceu à China «todo o apoio que nos deu». Prestou assim desnecessária e humilhante vassalagem à cruel ditadura comunista e ultraliberal que continua a imperar na República Popular da China. 

4. Este autêntico tiro de canhão no coração do PS foi imediatamente aproveitado pela direita portuguesa, por via de um dos políticos mais reaccionários do CDS-PP, o eurodeputado não-cónego Nuno Melo, que se apressou a reclamar que António Costa «agradecesse da mesma forma aos portugueses que o tornaram possível». Uma humilhação e uma vergonha para todos os socialistas (pelo menos os que o são mesmo!), através de um vídeo que, ao que parece, se tornou viral, graças a um dos mais populares blogues da direita portuguesa, o «Blasfémias», que intitulou o vídeo «Portugal está diferente». 

5. Sou um dos fundadores do PS – em 1973 – e, neste momento, o militante número 15 do partido (com as quotas em dia). Mas já chega! Nunca me passou pela cabeça que um secretário-geral do PS se atrevesse a prestar vassalagem à ditadura comunista e ultraliberal da República Popular da China, e se atrevesse a declarar, sem o menor respeito – repito – por centenas de milhares de desempregados e cerca de dois milhões de portugueses no limiar da pobreza, que Portugal está hoje melhor do que há quatro anos. 

Mas, para além da inqualificável «chinesice» do actual secretário-geral do PS, não é difícil encontrar fundamentos ideológicos e políticos da minha atitude no livro que publiquei em 2012, sobre «A Crise da Esquerda Europeia», assim como nas conferências que fui fazendo e nos ensaios que fui publicando, regra geral no «i». 

Por isso, enviarei à direcção do PS, ainda esta semana, uma carta muito simples, sem considerandos e/ou justificações, solicitando, pura e simplesmente, a minha desfiliação do partido. Tenho 70 anos e quero acabar a minha vida com alguma dignidade e coerência. O que não é manifestamente possível continuando a militar neste PS. 

Não, não vou aderir a qualquer outro partido! Mas vou votar, muito provavelmente, no Bloco de Esquerda, tentando contrariar o oportunismo daqueles que se tornaram dissidentes do BE e se aproximaram do PS de António Costa, porventura à espera de um «lugarzinho» na mesa do orçamento, ou seja, na distribuição de cargos num futuro governo. 

Não duvido das miseráveis campanhas que a «ralé» que tomou conta do «aparelho» do PS é capaz de desenvolver contra mim. Mas eu sou dos que passaram pela política – na Administração Pública, no Governo e na Presidência da República - sem qualquer propósito de se governarem. E é certo que não me governei. Ainda bem. Orgulho-me disso!

Cronista, jornalista, ex-deputado e ex-secretário de Estado português

IN "i"
27/02/15


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