Por que razão decidi
desfiliar-me do PS
António nunca devia ter dado este passo por uma questão de coerência e dignidade, e por respeito pelas centenas de milhares de desempregados e pelos milhões de portugueses no limiar da pobreza
1.
António Costa, secretário-geral do PS, tem acumulado nas últimas
semanas declarações que, a meu ver, põem em causa a credibilidade do PS
como principal partido de oposição.
O secretário-geral do PS – confesso que, hoje, tenho muita
dificuldade em escrever por extenso Partido Socialista – já declarou,
nomeadamente, que considera o «incontornável» advogado de negócios
António Vitorino um excelente candidato a PR. Este ainda não disse que
não, mas, entretanto, já aceitou ser presidente da assembleia geral da
«chinesíssima» EDP (mais um «tacho» na privada) e, portanto, membro do
respectivo conselho geral, presidido pelo «incontornável» Eduardo
Catroga.
Eu diria – para que a imagem do actual PS ficasse completa – que
agora só faltaria António Costa apoiar a candidatura do «incontornável»
Jorge Coelho ao cargo de futuro primeiro-ministro.
2. Todavia, o passo fatal que António Costa nunca devia ter dado foi
admitir que o país está hoje numa situação «bastante diferente daquela
em que estava há quatro anos» – ou seja, para melhor, porque, apesar da
sua ambiguidade aparente, a declaração não admite outra interpretação.
E digo que António nunca devia ter dado este passo por uma questão de
coerência e dignidade, e por respeito pelas centenas de milhares de
desempregados e pelos milhões de portugueses no limiar da pobreza,
vítimas da brutal política de austeridade levada a cabo, com crueldade e
insensibilidade, pelo governo de direita ultraliberal de Passos Coelho e
Paulo Portas, com a conivência de Cavaco Silva.
3. A afirmação do actual secretário-geral do PS (o anterior, António
José Seguro, deve estar a rir de mim a bandeiras despregadas) foi
proferida há poucos dias, em 19 de Fevereiro, no Casino da Póvoa,
perante uma plateia de chineses radicados em Portugal, a pretexto da
celebração do Ano Novo Chinês – o Ano da Cabra, caramba!
Depois de elogiar «a relação e forma extraordinária como a comunidade
chinesa se tem integrado» no nosso país, o actual presidente da Câmara
Municipal de Lisboa reconheceu o «apoio» que «os chineses e os
investidores chineses» deram nestes últimos anos a Portugal.
Palavra de António Costa: «Como nós dizemos em Portugal, os amigos
são para as ocasiões. E numa ocasião difícil para o país, em que muitos
não acreditaram que o país tinha condições para enfrentar e vencer a
crise, a verdade é que os chineses, os investidores chineses, disseram
‘presente’, vieram e deram um grande contributo para que Portugal
pudesse estar hoje na situação em que está, bastante diferente daquela
em que estava há quatro anos atrás». E agradeceu à China «todo o apoio
que nos deu». Prestou assim desnecessária e humilhante vassalagem à
cruel ditadura comunista e ultraliberal que continua a imperar na
República Popular da China.
4. Este autêntico tiro de canhão no coração do PS foi imediatamente
aproveitado pela direita portuguesa, por via de um dos políticos mais
reaccionários do CDS-PP, o eurodeputado não-cónego Nuno Melo, que se
apressou a reclamar que António Costa «agradecesse da mesma forma aos
portugueses que o tornaram possível». Uma humilhação e uma vergonha para
todos os socialistas (pelo menos os que o são mesmo!), através de um
vídeo que, ao que parece, se tornou viral, graças a um dos mais
populares blogues da direita portuguesa, o «Blasfémias», que intitulou o
vídeo «Portugal está diferente».
5. Sou um dos fundadores do PS – em 1973 – e, neste momento, o
militante número 15 do partido (com as quotas em dia). Mas já chega!
Nunca me passou pela cabeça que um secretário-geral do PS se atrevesse a
prestar vassalagem à ditadura comunista e ultraliberal da República
Popular da China, e se atrevesse a declarar, sem o menor respeito –
repito – por centenas de milhares de desempregados e cerca de dois
milhões de portugueses no limiar da pobreza, que Portugal está hoje
melhor do que há quatro anos.
Mas, para além da inqualificável «chinesice» do actual
secretário-geral do PS, não é difícil encontrar fundamentos ideológicos e
políticos da minha atitude no livro que publiquei em 2012, sobre «A
Crise da Esquerda Europeia», assim como nas conferências que fui fazendo
e nos ensaios que fui publicando, regra geral no «i».
Por isso, enviarei à direcção do PS, ainda esta semana, uma carta
muito simples, sem considerandos e/ou justificações, solicitando, pura e
simplesmente, a minha desfiliação do partido. Tenho 70 anos e quero
acabar a minha vida com alguma dignidade e coerência. O que não é
manifestamente possível continuando a militar neste PS.
Não, não vou aderir a qualquer outro partido! Mas vou votar, muito
provavelmente, no Bloco de Esquerda, tentando contrariar o oportunismo
daqueles que se tornaram dissidentes do BE e se aproximaram do PS de
António Costa, porventura à espera de um «lugarzinho» na mesa do
orçamento, ou seja, na distribuição de cargos num futuro governo.
Não duvido das miseráveis campanhas que a «ralé» que tomou conta do
«aparelho» do PS é capaz de desenvolver contra mim. Mas eu sou dos que
passaram pela política – na Administração Pública, no Governo e na
Presidência da República - sem qualquer propósito de se governarem. E é
certo que não me governei. Ainda bem. Orgulho-me disso!
Cronista, jornalista, ex-deputado e ex-secretário de Estado português
IN "i"
27/02/15
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