Só com os mesmos valores
o diálogo é possível
O diálogo significa presença de dois, ou
seja, saída de mim para poder entender o outro. E porquê? Porque a
verdade é uma, uma só, mas é tanto mais verdadeira quanto mais tem em
conta a verdade do outro. O erro situa-se ao nível da paixão, que impede
o diálogo e nos deixa dobrados sobre nós mesmos, incapazes de olhar e
de escutar o outro.
No diálogo, não há hereges, quando todos
procuram o mesmo: a verdade. Quem julga que, como solitária “mónada”,
tem a verdade, é normalmente um intolerante. Por isso, no futebol, há
menos razão do que intolerância. Porque uma simples discussão tem,
frequentemente, a paixão feroz que por vezes se levanta nos estádios,
nos grandes jogos. Que haja interlocutores é a primeira e necessária
condição do diálogo. E nunca encontramos interlocutores, quando a nossa
verdade nos parece a única verdade. Desde o grego Sócrates que o diálogo
se caracteriza pela procura da verdade, em comum. Quando o diálogo se
assemelha a uma parada de militares, que acertam o passo pelos berros
imperativos do oficial, a verdade não se vislumbra. Só nos aproximamos
da verdade, trilhando este caminho: do uno ao uno, pelo múltiplo. Por
outras palavras: de uma unidade original, consciente das suas
limitações, para uma unidade final de plenitude, onde todos os elementos
se sentem integrais mas superados. O pensamento de Pascal poderá aqui
invocar-se: “Todos erramos e tanto mais perigosamente quanto mais
defendemos as nossas verdades, pensando que só há erro nas verdades dos
outros“. Não se trata, na procura da verdade, de vencer um adversário,
mas de vencer a inimizade que nos impede possamos alcançar a verdade, em
equipa – uma equipa farta em calor humano! No desporto (no futebol,
portanto) a competição não esconde, antes supõe, a compreensão e o
afeto, porque não são estreitas nem boçais as suas fronteiras.
Todos nos recordamos daquela passagem do Fausto,
em que o velho pesquisador, na sua cela de alquimista, abre o Evangelho
segundo São João e entra de traduzi-lo. Logo na primeira linha se
detém, queixo derreado sobre as palavras: “Ao princípio era o Verbo”, o termo com a qual pretendia traduzir o grego Logos. As dúvidas encordoavam-se na sua cabeça, diante da tradução a fazer mas, a alturas tantas, decidiu-se: “No princípio era a Ação”. “Primeiro a Ação e só depois o Pensamento?”
Não resistem a perguntar alguns, de olhar incrédulo. No plano
metafísico, ou lógico, ou axiológico, a Ação não vem em primeiro lugar,
de facto. Contudo, o seu lugar está, antes de tudo o mais, do ponto de
vista histórico e cronológico. Já o bom Papa João (o Papa João XXIII)
aconselhava a ação, mas com o sentido do diálogo, “conferindo a esta
palavra toda a sua riqueza: reconhecer o outro, como outro, amá-lo tal
como é e não como alguém que é preciso dobrar e conquistar (…). Em vez
de iniciar um diálogo, Pio XII apelava para uma forma de misticismo.
João XXIII não apela, não chama para si ou para as suas razões, caminha
para os outros. Creio que é este o papel decisivo da política de João
XXIII: reconhecer sempre o outro como um interlocutor válido” (in Yves
Congar, “Diálogo ou Violência?”, Encontros Internacionais de Genebra, Publicações Europa-América, p. 43).
E prossegue o mesmo sacerdote: “Ao convidar os observadores, para o Concílio, ao dizer-lhes: Vinde
e vede, todas as portas estão abertas, sereis inteiramente livres e
inteiramente respeitados, falaremos sem preconceitos, sem reservas, sem
manobras ocultas – João XXIII realizou no fundo um ato comparável ao
de Gandhi que (vagabundo sublime da solidariedade) dormia em casas de
muçulmanos, para lhes provar que os ouvia, que os respeitava, que os
amava” (idem, ibidem, p. 45). Enfim, o espírito aberto ao diálogo
implica, necessariamente, a consciência de que não tenho o privilégio
exclusivo da Verdade porque, uma boa parte dela, está precisamente
naqueles que eu proclamo, rubro de cólera, que a não têm.
É
verdade que, durante a sua existência, não há ninguém que possa ser
permanentemente igual a si mesmo. O que antigamente se chamava “um homem
de convicções”, incapaz de um erro, ou de uma simples fraqueza, não
passa de ficção, de pura mentira. Todos erramos! Mas revelamos uma
admirável intrepidez mental e coragem moral, quando o reconhecemos
(errar é próprio da condição humana) e, através dos nossos erros,
passamos a compreender e a tolerar melhor os nossos adversários. Por
outro lado, o diálogo não só é necessário, como é possível, mormente
entre pessoas com a mesma cultura e os mesmos princípios e os mesmos
valores. O diálogo é possível, por exemplo, entre os dirigentes do
Sporting Clube de Portugal e o Sport Lisboa e Benfica. Leio, de Nuno
Reis, no jornal A Bola (2015/2/11): “As relações entre o Sporting e o Benfica já não estavam imaculadas, antes do derby
e o dia do jogo trouxe situações ainda menos diplomáticas na Tribuna de
Honra do Estádio José de Alvalade. A comitiva do Benfica, composta por
oito pessoas (…) foi recebida com indiferença na tribuna, onde não se
registou, ainda assim, qualquer gesto ou palavra, hostis, por parte das
pessoas ligadas ao Sporting”. Mas qual a razão fundante deste
comportamento dos dirigentes do Sporting? Um comunicado da direção do
Clube de Alvalade, de 10 do mês em curso, assim o explica: “No passado
sábado, dia 7 de Fevereiro, no pavilhão da Luz, durante o jogo de
futsal, entre a equipa da casa e o Sporting, foi exibida a toda a
largura de um dos topos das bancadas uma faixa com a inscrição: Very light 1996.
Esta inqualificável frase é uma alusão ao bárbaro assassinato do adepto
leonino Rui Mendes, na final da Taça de Portugal, com recurso a um very light,
lançado por um adepto do Benfica (…). No pavilhão, encontrava-se a
assistir ao jogo o presidente do SLB, que visualizou a referida faixa e
não tomou qualquer medida, na altura, nem o SLB emitiu nenhuma
declaração a repudiar veementemente esta alusão a um assassinato”.
E,
depois doutros considerandos, o Conselho Diretivo do Sporting Clube de
Portugal assim remata o seu comunicado de 10 de Fevereiro de 2015: “Face
a tudo o que foi anteriormente relatado e em prol da defesa dos mais
elementares valores humanos e da dignidade do Sporting Clube de
Portugal, não nos resta outra alternativa que não seja o corte de
relações institucionais com o SLB e levar estes casos às entidades
competentes, levando os mesmos até às últimas consequências”. Pelo que
venho de escrever se infere que não concordo com a sobreposição
valorativa do corte de relações institucionais, no cotejo com outras
iniciativas que, em casos lamentáveis, como este, é preciso tomar
imediatamente, no futebol português. Mas não escondo, se não se pretende
aluir os fundamentos da ética desportiva e dos valores que informam a
nossa cultura ocidental e cristã, que hic et nunc cabe ao
Benfica, no meu modesto entender, demarcar-se, distanciar-se do
comportamento condenável da sua claque. Quem, como eu, conheceu tantos
dirigentes do SLB, tem a certeza que alguns deles, hoje, já o teriam
feito.
Conheci, entre eles, pessoas que sempre souberam vasar as
preocupações morais e políticas do seu tempo, nos próprios moldes do
pensar e do sentir benfiquistas. E conheço atualmente benfiquistas, que
muito admiro e respeito, que sabem dignificar o seu benfiquismo,
convertendo-o num colóquio universal de homens de bem. Não me parece,
por isso, difícil aos principais responsáveis pela direção e gestão do
Benfica, tentem, uma vez mais, reabilitar, pela clara honradez dos
processos, o futebol português. E como? Porque os mesmos valores éticos
distinguem os dois clubes; porque ambos proclamam o primado desses
valores, na prática desportiva – exaltando o que une e repudiando o que
pode afastar o convívio salutar entre os dois grandes clubes. Mesmo que
pareça difícil, por outras razões ponderosas…
Professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto
IN "BOLA"
12/02/15
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