19/02/2015

MANUEL SÉRGIO

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Só com os mesmos valores
 o diálogo é possível 

O diálogo significa presença de dois, ou seja, saída de mim para poder entender o outro. E porquê? Porque a verdade é uma, uma só, mas é tanto mais verdadeira quanto mais tem em conta a verdade do outro. O erro situa-se ao nível da paixão, que impede o diálogo e nos deixa dobrados sobre nós mesmos, incapazes de olhar e de escutar o outro.

No diálogo, não há hereges, quando todos procuram o mesmo: a verdade. Quem julga que, como solitária “mónada”, tem a verdade, é normalmente um intolerante. Por isso, no futebol, há menos razão do que intolerância. Porque uma simples discussão tem, frequentemente, a paixão feroz que por vezes se levanta nos estádios, nos grandes jogos. Que haja interlocutores é a primeira e necessária condição do diálogo. E nunca encontramos interlocutores, quando a nossa verdade nos parece a única verdade. Desde o grego Sócrates que o diálogo se caracteriza pela procura da verdade, em comum. Quando o diálogo se assemelha a uma parada de militares, que acertam o passo pelos berros imperativos do oficial, a verdade não se vislumbra. Só nos aproximamos da verdade, trilhando este caminho: do uno ao uno, pelo múltiplo. Por outras palavras: de uma unidade original, consciente das suas limitações, para uma unidade final de plenitude, onde todos os elementos se sentem integrais mas superados. O pensamento de Pascal poderá aqui invocar-se: “Todos erramos e tanto mais perigosamente quanto mais defendemos as nossas verdades, pensando que só há erro nas verdades dos outros“. Não se trata, na procura da verdade, de vencer um adversário, mas de vencer a inimizade que nos impede possamos alcançar a verdade, em equipa – uma equipa farta em calor humano! No desporto (no futebol, portanto) a competição não esconde, antes supõe, a compreensão e o afeto, porque não são estreitas nem boçais as suas fronteiras.

Todos nos recordamos daquela passagem do Fausto, em que o velho pesquisador, na sua cela de alquimista, abre o Evangelho segundo São João e entra de traduzi-lo. Logo na primeira linha se detém, queixo derreado sobre as palavras: “Ao princípio era o Verbo”, o termo com a qual pretendia traduzir o grego Logos. As dúvidas encordoavam-se na sua cabeça, diante da tradução a fazer mas, a alturas tantas, decidiu-se: “No princípio era a Ação”. “Primeiro a Ação e só depois o Pensamento?” Não resistem a perguntar alguns, de olhar incrédulo. No plano metafísico, ou lógico, ou axiológico, a Ação não vem em primeiro lugar, de facto. Contudo, o seu lugar está, antes de tudo o mais, do ponto de vista histórico e cronológico. Já o bom Papa João (o Papa João XXIII) aconselhava a ação, mas com o sentido do diálogo, “conferindo a esta palavra toda a sua riqueza: reconhecer o outro, como outro, amá-lo tal como é e não como alguém que é preciso dobrar e conquistar (…). Em vez de iniciar um diálogo, Pio XII apelava para uma forma de misticismo. João XXIII não apela, não chama para si ou para as suas razões, caminha para os outros. Creio que é este o papel decisivo da política de João XXIII: reconhecer sempre o outro como um interlocutor válido” (in Yves Congar, “Diálogo ou Violência?”, Encontros Internacionais de Genebra, Publicações Europa-América, p. 43).

E prossegue o mesmo sacerdote: “Ao convidar os observadores, para o Concílio, ao dizer-lhes: Vinde e vede, todas as portas estão abertas, sereis inteiramente livres e inteiramente respeitados, falaremos sem preconceitos, sem reservas, sem manobras ocultas – João XXIII realizou no fundo um ato comparável ao de Gandhi que (vagabundo sublime da solidariedade) dormia em casas de muçulmanos, para lhes provar que os ouvia, que os respeitava, que os amava” (idem, ibidem, p. 45). Enfim, o espírito aberto ao diálogo implica, necessariamente, a consciência de que não tenho o privilégio exclusivo da Verdade porque, uma boa parte dela, está precisamente naqueles que eu proclamo, rubro de cólera, que a não têm.

É verdade que, durante a sua existência, não há ninguém que possa ser permanentemente igual a si mesmo. O que antigamente se chamava “um homem de convicções”, incapaz de um erro, ou de uma simples fraqueza, não passa de ficção, de pura mentira. Todos erramos! Mas revelamos uma admirável intrepidez mental e coragem moral, quando o reconhecemos (errar é próprio da condição humana) e, através dos nossos erros, passamos a compreender e a tolerar melhor os nossos adversários. Por outro lado, o diálogo não só é necessário, como é possível, mormente entre pessoas com a mesma cultura e os mesmos princípios e os mesmos valores. O diálogo é possível, por exemplo, entre os dirigentes do Sporting Clube de Portugal e o Sport Lisboa e Benfica. Leio, de Nuno Reis, no jornal A Bola (2015/2/11): “As relações entre o Sporting e o Benfica já não estavam imaculadas, antes do derby e o dia do jogo trouxe situações ainda menos diplomáticas na Tribuna de Honra do Estádio José de Alvalade. A comitiva do Benfica, composta por oito pessoas (…) foi recebida com indiferença na tribuna, onde não se registou, ainda assim, qualquer gesto ou palavra, hostis, por parte das pessoas ligadas ao Sporting”. Mas qual a razão fundante deste comportamento dos dirigentes do Sporting? Um comunicado da direção do Clube de Alvalade, de 10 do mês em curso, assim o explica: “No passado sábado, dia 7 de Fevereiro, no pavilhão da Luz, durante o jogo de futsal, entre a equipa da casa e o Sporting, foi exibida a toda a largura de um dos topos das bancadas uma faixa com a inscrição: Very light 1996. Esta inqualificável frase é uma alusão ao bárbaro assassinato do adepto leonino Rui Mendes, na final da Taça de Portugal, com recurso a um very light, lançado por um adepto do Benfica (…). No pavilhão, encontrava-se a assistir ao jogo o presidente do SLB, que visualizou a referida faixa e não tomou qualquer medida, na altura, nem o SLB emitiu nenhuma declaração a repudiar veementemente esta alusão a um assassinato”.

E, depois doutros considerandos, o Conselho Diretivo do Sporting Clube de Portugal assim remata o seu comunicado de 10 de Fevereiro de 2015: “Face a tudo o que foi anteriormente relatado e em prol da defesa dos mais elementares valores humanos e da dignidade do Sporting Clube de Portugal, não nos resta outra alternativa que não seja o corte de relações institucionais com o SLB e levar estes casos às entidades competentes, levando os mesmos até às últimas consequências”. Pelo que venho de escrever se infere que não concordo com a sobreposição valorativa do corte de relações institucionais, no cotejo com outras iniciativas que, em casos lamentáveis, como este, é preciso tomar imediatamente, no futebol português. Mas não escondo, se não se pretende aluir os fundamentos da ética desportiva e dos valores que informam a nossa cultura ocidental e cristã, que hic et nunc cabe ao Benfica, no meu modesto entender, demarcar-se, distanciar-se do comportamento condenável da sua claque. Quem, como eu, conheceu tantos dirigentes do SLB, tem a certeza que alguns deles, hoje, já o teriam feito.

Conheci, entre eles, pessoas que sempre souberam vasar as preocupações morais e políticas do seu tempo, nos próprios moldes do pensar e do sentir benfiquistas. E conheço atualmente benfiquistas, que muito admiro e respeito, que sabem dignificar o seu benfiquismo, convertendo-o num colóquio universal de homens de bem. Não me parece, por isso, difícil aos principais responsáveis pela direção e gestão do Benfica, tentem, uma vez mais, reabilitar, pela clara honradez dos processos, o futebol português. E como? Porque os mesmos valores éticos distinguem os dois clubes; porque ambos proclamam o primado desses valores, na prática desportiva – exaltando o que une e repudiando o que pode afastar o convívio salutar entre os dois grandes clubes. Mesmo que pareça difícil, por outras razões ponderosas…

Professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto

IN "BOLA"
12/02/15


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