Lilith
Os balanços de ano sempre me causaram alguma estranheza, porque os
resumos pecam pelo esquecimento ao destacarem momentos melhores e outros
piores: há sempre sumo nas entrelinhas que acaba por escorrer para
todos os temas e que se pode constituir como pormenor valioso numa
narrativa, e que se perde. É pena. Mas no acto de seleccionar, há sempre
algo que fica de fora. O mundo é muito injusto.
De qualquer das formas, e correndo eu o risco de me esquecer
de coisas importantes, creio que 2014 foi o ano largamente das mulheres.
E não é por ser mulher que o digo, é porque, para onde quer que olhe,
vejo feminismo.
Vejo mulheres em luta, mulheres em destaque, mulheres de mangas arregaçadas, no fundo.
O Google diz que uma das palavras mais procuradas em 2014 foi
‘feminismo’. Eu acredito. Porque o Google, tal como uma mulher, sabe
imenso! [Risos]. Mas antes da estatística ser conhecida, é importante
pensar no porquê que o ano foi das mulheres.
Além das acções concretas que as põem em destaque, entrego 2014 às
mulheres à escala global, por terem sido capazes de defender todo o tipo
de causas, por terem sido poderosas, por terem reconhecido, ainda que
de forma residual, a sua imensa contribuição para a afirmação clara
daquilo a que gosto de chamar ‘novos feminismos’. De Emma Watson
(escolha óbvia) a Beyoncé ou Lady Gaga, passando pela já veterana
Angelina Jolie, mas nunca esquecendo as anónimas que saltaram para a
ribalta pelas mais diversas razões, como a mártir Tugçe Albayrak ou a
Nobel da Paz Malala Yousafzai, entre tantas outras impossíveis de
nomear, sob pena deste texto se tornar uma lista, o mais importante foi
que, em 2014, a causa feminista se alastrou e expandiu de tal forma que
pode não ter feito capas de jornal, mas fez certamente com que muitas
mulheres repensassem o seu posicionamento relativamente a elas próprias e
às suas semelhantes.
Reza a lenda que as mulheres são impetuosas umas para as outras, que
se odeiam entre si e que são capazes de não se apoiar em situações
críticas em que esse mesmo apoio seria muito bem-vindo. É tudo verdade.
Sei disso porque vivo como mulher há 29 anos e já experimentei, quer
pessoal quer profissionalmente, o ácidozinho feminino, capaz de corroer a
mais indestrutível das ligas. Não que me tenha afectado, mas como
sempre me rodeei de mulheres genuinamente felizes consigo próprias,
capazes de encetar, portanto, amizades incondicionais, nunca fiquei a
caminhar muito com a crueldade feminina. Quanto à discriminação
masculina perante a mulher emancipada, esse já é outro assunto; apesar
de nunca me ter sentido discriminada nem diminuída na minha condição de
género, sei no entanto que já foi exercida essa força sobre mim e que
esses episódios continuarão a suceder. O ideal, depois da veemência da
cruzada deste ano, era que deixassem de acontecer, mas – e bem longe da
resignação – fazem parte. Para essas ocasiões, usa-se o ensinamento de
Valesca Popozuda: «Beijinho no ombro».
É claro que falamos também de um ano de excessos mediáticos, em que a
hipersensibilização das particularidades da condição feminina
levantaram ondas desnecessárias, que só vieram denegrir o que se tem
andado a professar, ao encontrar-se, gratuitamente, mais uma luta vazia
só porque as protagonistas são mulheres. Como em tudo, o essencial é ser
razoável e entender que a condição da mulher pode, em 2014, ter estado
pior em alguns aspectos, mas que o Google Maps aponta que o caminho
segue noutra direcção (isto porque existe aquele mito que reza que as
mulheres a lerem mapas são péssimas!).
Por isso, e porque em Portugal ser mulher em 2014 não foi afinal nada
mau, gostava de deixar aqui os meus vivas para todas as que deram o
corpo ao manifesto de forma literal ou figurada.
Isto foi só um começo. Ainda há muito trabalho pela frente. É muito
importante saber que não interessa quantas barbearias com entrada vetada
a mulheres abram, porque continuaremos a seguir a estrada da
igualdade.
IN "SOL"
02/01/14
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