ESTA SEMANA NA
"SÁBADO"
"SÁBADO"
Documento inédito mostra que
Estado comprou as selvagens
Anthony Miles, 77 anos, lembra-se bem daquele fim de Dezembro de
1971, em que a família Cossart consumou a venda das Ilhas Desertas ao
Estado português, cuja propriedade dividia com os Hinton, outros
ingleses históricos na Madeira. Foi ele que representou os tios e a mãe
na cerimónia solene da escritura, no Palácio de São Lourenço, no
Funchal, na presença de todas as entidades militares e civis. Rubricados
os documentos e firmado o negócio, Anthony Miles recorda-se de George
Welsh (herdeiro dos Hinton) se dirigir a António Braamcamp Sobral, o
governador da região, e dizer: "Já assinei a escritura, mas o dinheiro
ainda não recebi…"
.
O governador explicou que tinha de esperar um pouco pelos homens
do Banco de Portugal… No total, eram 3.200 contos (um valor que hoje,
corrigido da inflação, corresponderia a 820 mil euros, de acordo com o
site Pordata). Toda essa fortuna lhes chegou, pouco depois, em notas
dentro de envelopes transportados pelos funcionários do Banco de
Portugal. Anthony Miles lembra à SÁBADO que George Welsh ainda perguntou
se, em vez daquele dinheiro vivo, não era mais prático passar um
cheque. Por uma "razão orçamental" que nunca lhe foi muito bem
explicada, tinha de ser assim, e ocorrer antes do fim do ano.
A seguir ao cerimonial emproado, deu-se o caricato. Na mesa do
governador, diante de toda a gente, Braamcamp Sobral dividiu as notas de
escudo entre Anthony Miles e George Welsh. "Como era véspera de Ano
Novo, fui a correr disparado para o banco porque não queria ficar com
aquele dinheiro todo em casa", recorda Anthony Miles. Este descendente
de ingleses residente na Madeira é bisneto de Charles Cossart que, em
1864, comprou as ilhas em hasta pública, a meias com o seu amigo Henry
Hinton, para usarem depois como coutada de caça e pesca.
Ao fim de 42 anos, em finais de 2013, um investigador descobriu por
acaso, no Arquivo Contemporâneo do Ministério da Finanças (ACMF), em
Lisboa, os documentos do governo para a autorização daquela despesa,
assim descrita: "Material – Aquisição de um grupo de imóveis denominado
‘Ilhas Desertas’". Trata-se de uma autorização de 3.200 contos, em nome
do governador Braamcamp Sobral (e não dos Cossart ou dos Hinton), dando
luz verde para se pagarem as Desertas. Outro documento, de mil contos
(que corresponderiam hoje a 256 mil euros), confirmava o pagamento ao
banqueiro Luís Rocha Machado, que era o dono das Ilhas Selvagens. O seu
pai comprara-as em 1904, quando o seu proprietário, Costa Noronha,
estava com problemas de dívidas de jogo. O caso da venda das ilhas foi
considerado tão "insólito" que a direcção do ACMF publicou a
documentação na sua newsletter de Janeiro.
A aquisição das Ilhas Desertas e Selvagens pelo Estado teve uma
intervenção activa de Manuel Ricardo Espírito Santo, filho do então
presidente do Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa (BESCL), e
primo de Ricardo Salgado. Pedro Quartin Graça, ex-presidente do MPT –
Partido da Terra, que publicou em Novembro de 2014 a sua tese de
doutoramento "O Caso das Selvagens", sugere que o BES poderá ter
financiado a operação. Quartin Graça publicou cartas que provam o
envolvimento do clã Espírito Santo.
Resumindo uma longa história: em 1967, Rocha Machado tinha
arrendado as suas ilhas ao britânico Alexander Zino, um inglês residente
na Madeira, apaixonado pelas aves, que lutava por fazer ali uma reserva
natural de cagarras, que eram dizimadas pela caça para alimentação e
extracção de óleos e penas. Três anos depois, conseguiu que o World
Wildlife Fund (WWF) se interessasse pela compra das ilhas, através do
príncipe da Holanda, Bernhard de Lippe-Biesterfeld, que presidia à
instituição que ajudara a proteger as Galápagos (foi também o fundador
do Clube Bilderberg). Manuel Ricardo serviu de ponte entre o príncipe,
seu amigo, o Presidente da República, Américo Thomaz, e Alexander Zino.
Numa carta para Zino, datada de Julho de 1971, Espírito Santo dá conta
dos resultados de uma reunião com Thomaz: "Em breve tudo estará
resolvido a contento de todos", escreveu. O Estado tinha exercido o
direito de preferência para adquirir as ilhas e criar a reserva natural.
Francis Zino, filho de Alexander, hoje com 72 anos, e que ainda
mantém a única casa existente nas Selvagens, é tão apaixonado pelas aves
como o pai. Recorda: "O WWF ia comprar aquilo ao Rocha Machado com
condições fantásticas. Pagava todas as despesas para manter lá pessoal e
até comprava um barco, mas o Diário de Lisboa escreveu uma notícia a
dizer que o meu pai estava lá a fazer uma base de submarinos russos".
Era fantasia. Não havia soviéticos por ali infiltrados, mas, em 1968, a
NATO esteve para bombardear as Selvagens durante um exercício, o que
arrasaria com todo o ecossistema. Os documentos constam do livro de
Quartin Graça. "A sorte é que o comandante era ornitólogo e as
associações de ornitologia contactaram-no para anular o bombardeamento",
diz o autor. O almirante britânico Nigel Henderson, chefe do Comité
Militar da NATO, era o presidente da Royal Naval Bird Watching Society.
Em Dezembro de 2014, as Selvagens voltaram a ser tema: Espanha
apresentou à ONU uma proposta de extensão da plataforma continental que
se sobrepõe em 10 mil quilómetros com Portugal. Não está em causa a
soberania, apesar das constantes disputas.Em 1976, um grupo de
marinheiros ergueu lá uma bandeira espanhola. A questão é que Portugal
considera-as ilhas e Espanha diz que são rochedos, o que tem implicações
no Direito do Mar.
* Uma lição de história nacional
.
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