27/12/2014

VICENTE JORGE SILVA






Jardim e 
o Juízo Final

Um emaranhado de estradas que se entrecruzam e onde nos perdemos sucessivas vezes até chegarmos, enfim, ao nosso destino, algures no Estreito de Câmara de Lobos, a oeste do Funchal. É ali, mas nada parece idêntico ao que era há uma década e meia. A antiga paisagem de vinhas em socalcos tornou-se a réplica de um subúrbio terceiro-mundista, saturada de construções implantadas caoticamente umas sobre as outras e que são um catálogo dos piores estilos arquitectónicos.

Não falta sequer um monstruoso hipermercado (Continente, ex-Sá, principal grupo da distribuição madeirense, entretanto falido) para que as anteriores referências do lugar sejam hoje irreconhecíveis. Mas a desolação quase surreal desse panorama outrora bucólico e harmonioso é ainda sublinhada pelos viadutos e túneis inacabados, um simbólico monumento à demência do betão que assaltou a chamada Madeira Nova e a levou à ruína.

Encontramos paisagens como esta através de toda a ilha, sobretudo na costa sul, evocando um pequeno apocalipse de desordenamento territorial e o empenho da selvajaria humana em destruir a natureza. Muito a propósito, Alberto João Jardim, no seu último (?) discurso como presidente do Governo madeirense, cargo em que ultrapassou a longevidade política de Salazar, citaria o Juízo Final do Evangelho de S. Mateus e o «trono glorioso» a que - modestamente e sem ironia - também ele aspira.

Na verdade, o jardinismo não deixou pedra sobre pedra. Mas, com isso, deixou uma herança quase ingerível pelos seus sucessores putativos, quer os do seu próprio partido, quer os de outras proveniências políticas: uma dívida de mais de 9 mil milhões de euros a que acrescem encargos superiores a 13 mil milhões.

Decorre precisamente hoje a primeira volta das eleições no PSD-Madeira para escolher o sucessor de Jardim entre seis candidatos: três que se propõem romper com o seu legado e outros três que desejam prossegui-lo. Mas todos são típicos produtos do regime de partido único que tem governado, de facto, o arquipélago nas últimas quatro décadas.

Ouvindo alguns deles, dir-se-ia, porém, que nunca tiveram nada a ver com o passado ou que este foi virtuoso apenas enquanto puderam partilhar alegremente o poder sob a suprema tutela jardinista. Um clássico do anedotário político.

No entanto, aquilo que seria, ainda há poucos anos, motivo de excitação política regional e nacional, ameaça dissipar-se numa indiferença e desencanto quase generalizados. À primeira vista, apesar dos discursos em contrário de alguns adeptos do actual regime ou da oposição, ninguém parece acreditar num milagre redentor do descalabro - económico, social, ecológico, cultural - a que chegou a Madeira. Assim, a grande polémica funchalense concentra-se numa controvérsia muito agreste sobre…as iluminações natalícias.

Jardim tem excelentes razões para evocar o Juízo Final, mas sobretudo porque teme as suas consequências (políticas - e não só). Aliás, um dos traços psicanalíticos da personagem é o de utilizar uma retórica que pretende sistematicamente exorcizar os seus próprios fantasmas inconfessados, projectando-os nos outros, num eterno inimigo interno ou externo: os opositores, os discordantes, o poder central, o colonialismo secular. Para não falar na loucura que parece possuir tudo e todos - menos, claro, ele próprio.

Ele governou à rédea solta, segundo a sua vontade soberana de pequeno déspota e em aliança com o clientelismo de uma nomenclatura subserviente e protegida da concorrência 'colonial'. A Madeira não conheceu uma verdadeira transição democrática depois do 25 de Abril, com uma sociedade maioritariamente refém dos empregos e serventias do regime jardinista, formatado pelos hábitos e costumes da ditadura. O imobilismo salazarista foi simplesmente substituído pelo activismo predador do jardinismo.

Ao contrário do que Jardim sempre pretendeu, a condescendência e até o temor manifestados pelos sucessivos responsáveis das instituições da República - incluindo o poder judicial -, face aos abusos autocráticos da sua governação, garantiram-lhe uma imunidade para além de todos os limites admissíveis num Estado de Direito.

Agora que, como na tradição clássica das agonias dos ditadores, as coisas chegaram a um ponto irreversível de ruptura e Jardim não conta já com a obediência cega de grande parte dos seus antigos cortesãos, resta-lhe lançar a ameaça de um Juízo Final. Só que esse juízo, como Jardim também teme, será feito contra ele - embora, infelizmente, demasiado tarde para poupar a Madeira aos malefícios da 'obra feita' durante o seu interminável e asfixiante reinado.

IN "SOL"
22/12714


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