Jardim e
o Juízo Final
Um emaranhado de estradas que se entrecruzam e onde nos perdemos
sucessivas vezes até chegarmos, enfim, ao nosso destino, algures no
Estreito de Câmara de Lobos, a oeste do Funchal. É ali, mas nada parece
idêntico ao que era há uma década e meia. A antiga paisagem de vinhas em
socalcos tornou-se a réplica de um subúrbio terceiro-mundista, saturada
de construções implantadas caoticamente umas sobre as outras e que são
um catálogo dos piores estilos arquitectónicos.
Não falta sequer um monstruoso hipermercado (Continente, ex-Sá,
principal grupo da distribuição madeirense, entretanto falido) para que
as anteriores referências do lugar sejam hoje irreconhecíveis. Mas a
desolação quase surreal desse panorama outrora bucólico e harmonioso é
ainda sublinhada pelos viadutos e túneis inacabados, um simbólico
monumento à demência do betão que assaltou a chamada Madeira Nova e a
levou à ruína.
Encontramos paisagens como esta através de toda a ilha, sobretudo na
costa sul, evocando um pequeno apocalipse de desordenamento territorial e
o empenho da selvajaria humana em destruir a natureza. Muito a
propósito, Alberto João Jardim, no seu último (?) discurso como
presidente do Governo madeirense, cargo em que ultrapassou a longevidade
política de Salazar, citaria o Juízo Final do Evangelho de S. Mateus e o
«trono glorioso» a que - modestamente e sem ironia - também ele aspira.
Na verdade, o jardinismo não deixou pedra sobre pedra. Mas, com isso,
deixou uma herança quase ingerível pelos seus sucessores putativos,
quer os do seu próprio partido, quer os de outras proveniências
políticas: uma dívida de mais de 9 mil milhões de euros a que acrescem
encargos superiores a 13 mil milhões.
Decorre precisamente hoje a primeira volta das eleições no
PSD-Madeira para escolher o sucessor de Jardim entre seis candidatos:
três que se propõem romper com o seu legado e outros três que desejam
prossegui-lo. Mas todos são típicos produtos do regime de partido único
que tem governado, de facto, o arquipélago nas últimas quatro décadas.
Ouvindo alguns deles, dir-se-ia, porém, que nunca tiveram nada a ver
com o passado ou que este foi virtuoso apenas enquanto puderam partilhar
alegremente o poder sob a suprema tutela jardinista. Um clássico do
anedotário político.
No entanto, aquilo que seria, ainda há poucos anos, motivo de
excitação política regional e nacional, ameaça dissipar-se numa
indiferença e desencanto quase generalizados. À primeira vista, apesar
dos discursos em contrário de alguns adeptos do actual regime ou da
oposição, ninguém parece acreditar num milagre redentor do descalabro -
económico, social, ecológico, cultural - a que chegou a Madeira. Assim, a
grande polémica funchalense concentra-se numa controvérsia muito
agreste sobre…as iluminações natalícias.
Jardim tem excelentes razões para evocar o Juízo Final, mas sobretudo
porque teme as suas consequências (políticas - e não só). Aliás, um dos
traços psicanalíticos da personagem é o de utilizar uma retórica que
pretende sistematicamente exorcizar os seus próprios fantasmas
inconfessados, projectando-os nos outros, num eterno inimigo interno ou
externo: os opositores, os discordantes, o poder central, o colonialismo
secular. Para não falar na loucura que parece possuir tudo e todos -
menos, claro, ele próprio.
Ele governou à rédea solta, segundo a sua vontade soberana de pequeno
déspota e em aliança com o clientelismo de uma nomenclatura
subserviente e protegida da concorrência 'colonial'. A Madeira não
conheceu uma verdadeira transição democrática depois do 25 de Abril, com
uma sociedade maioritariamente refém dos empregos e serventias do
regime jardinista, formatado pelos hábitos e costumes da ditadura. O
imobilismo salazarista foi simplesmente substituído pelo activismo
predador do jardinismo.
Ao contrário do que Jardim sempre pretendeu, a condescendência e até o
temor manifestados pelos sucessivos responsáveis das instituições da
República - incluindo o poder judicial -, face aos abusos autocráticos
da sua governação, garantiram-lhe uma imunidade para além de todos os
limites admissíveis num Estado de Direito.
Agora que, como na tradição clássica das agonias dos ditadores, as
coisas chegaram a um ponto irreversível de ruptura e Jardim não conta já
com a obediência cega de grande parte dos seus antigos cortesãos,
resta-lhe lançar a ameaça de um Juízo Final. Só que esse juízo, como
Jardim também teme, será feito contra ele - embora, infelizmente,
demasiado tarde para poupar a Madeira aos malefícios da 'obra feita'
durante o seu interminável e asfixiante reinado.
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