09/12/2014

RUI TAVARES

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Política é tempo

Como todos os políticos, Soares pode ter errado muitas vezes nas coisas pequenas. Como poucos, acertou na grande.

São várias as artes de que é composta a política. Para o desenho institucional e constitucional, a arquitetura. Para encontrar as palavras, a literatura. Para a representação do poder, a cenografia. Para a oposição de ideias e temperamentos, o drama. Para mover as pessoas, o arco narrativo do cinema. Para as juntar, a arte mais profunda que é a da psicologia, a leitura das almas. A política é uma arte de artes. Ninguém domina todas elas.

Mas fazer política — essa é a arte de ler o tempo. Como a música, portanto. Ler o tempo não é fácil. Para quem não o tenha de instinto, só se ganha com muita observação, mas toda a vida humana é feita de tempos, de ritmos que se cruzam. Há tempos longos, mais sinfónicos, e tempos curtos, mais metronómicos, e por cima dessa estrutura há uma total cacofonia de palavras e modas, exigência e temas, todos os dias, todas as horas, para confundir os incautos.

Os políticos medíocres correm atrás do assunto do dia; os políticos talentosos antecipam os assuntos dos próximos meses, do próximo ano. Ambos cantam atrás da música, pior ou melhor. Os grandes políticos entendem ou pressentem a estrutura que lhes permite introduzir novos temas, marcar um ritmo diferente, efetivamente mudar a música. Sabem quando as pessoas se cansam, quando um tema se esgota; conseguem distinguir entre o que as pessoas dizem e a razão por que o dizem, que nem sempre é coincidente com aquilo que querem. E depois, erram, muito — porque a ninguém é possível prever tudo.

Durante o século XX, Portugal mudou muito, mas não foi definido por muitos políticos. Começou com João Franco, que teve esperanças de mudar o sistema político a partir do apoio do rei — e cujo projeto morreu com o próprio rei. Depois com Afonso Costa, mais bem sucedido, que emergiu com um novo regime — a República — e o esticou até aos seus limites. E a seguir Salazar, por alguns critérios o político mais bem sucedido do século — foi o que mais tempo esteve no poder, e que poder mais completo exerceu — mas profundamente o mais fracassado. O Portugal que Salazar quis não existe; o que sobra é entendido como causa do nosso atraso.

Soares sempre se quis entender como anti-Salazar, e conseguiu-o. O Portugal dele era o oposto solar do país do ditador. Em vez de reclusivo, sociável; em vez de sisudo, alegre; em vez de desconfiado, aberto aos outros e ao futuro. Contra todas as expectativas, foi esse Portugal que vingou e Soares o político que definiu o resto do nosso século XX. De Cunhal a Sá Carneiro, de Eanes a Otelo, de Maria de Lourdes Pintasilgo a Freitas do Amaral, não faltavam à época personalidades fortes, mas só Cavaco Silva se aproxima da marca que Soares imprimiu à IIª República, cuja longevidade e importância já supera em muito a Iª.

Como conseguiu? Sendo ele mesmo, não imitando ninguém, e sabendo ler o tempo. Ganhando autonomia política na oposição democrática para poder agir por si depois da revolução, e a seguir à revolução acertando naquilo que os portugueses queriam: um estado social com liberdade. Aos noventa anos de Soares, ainda é uma liberdade com estado social que os portugueses desejam. Como todos os políticos, Soares pode ter errado muitas vezes nas coisas pequenas. Como poucos, acertou na grande.

IN "PÚBLICO"
08/12/14


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