O armário de
Carlos Abreu Amorim
Os ataques lusitanos à ideologia liberal utilizam invariavelmente a seguinte táctica: primeiro chamam vaca a um porco, e depois acusam-no de não dar leite. Assim é fácil.
Desde que Zita Seabra abandonou o PCP que eu não assistia a tamanho
entusiasmo com uma saída do armário ideológico nacional. Aconteceu no
domingo, numa entrevista publicada neste jornal. Autor do coming out:
Carlos Abreu Amorim. Motivo: segundo o deputado do PSD, parece que após
a crise internacional, “mas sobretudo neste mês muito intenso na
comissão do GES”, as suas convicções sobre o liberalismo foram
profundamente abaladas. E por isso, decidiu anunciar ao mundo (“até
estou comovido”) a seguinte conclusão: “Já não sou liberal.” E isto
porquê? Porque “tem de haver mais autoridade do Estado. O Estado tem de
ter força”.
Vai daí, o PÚBLICO dedicou-lhe dois editoriais, afirmando no primeiro
deles que “a crise financeira de 2008 acabou com as ilusões e são cada
vez mais as vozes de dentro do sistema a denunciar as políticas
ultraliberais. Abreu Amorim descobriu agora. Mais vale tarde...”. E o
meu colega de página Rui Tavares clamou ontem
por “trancas à porta”, recuperando essa popular história da carochinha
que é o alegado liberalismo do actual Governo: “Com a crise financeira e
a rédea solta que foi dada à banca para as suas depredações, houve
mesmo um assalto – e as vítimas fomos todos nós. Nos quadrantes
liberais, porém, não se reconhece o que aconteceu: puro e simples estado
de negação.”
Ora, eu acho que o confronto político é
essencial nas sociedades democráticas. Só que isto não é confronto
nenhum – isto é pura salganhada ideológica.
Salganhada 1: ser liberal
não tem nada que ver com aquilo a que agora se chamam “as políticas
ultraliberais”, mera caricatura de um capitalismo selvagem que ninguém
com dois dedos de testa pode defender. Não existe defesa da propriedade
privada ou do mercado livre – pedras angulares de qualquer liberalismo –
sem a presença de um Estado eficaz e regulador.
Salganhada 2: ser
liberal não significa a diminuição da autoridade do Estado, mas sim a diminuição do peso do
Estado na economia, que são coisas completamente diferentes. Passa pela
cabeça de alguém afirmar que Margaret Thatcher ou Ronald Reagan – os
dois grandes papões liberais, segundo certa esquerda – foram líderes
fracos, aos quais faltou autoridade? Salganhada 3: a desregulamentação
nos mercados anglo-saxónicos é um problema gravíssimo, que deve ser
enfrentado, mas não foi a causa directa do afundamento de Portugal. Só
um doido pode achar que os principais problemas de economia portuguesa
são semelhantes aos da economia inglesa ou americana.
Os ataques lusitanos à ideologia liberal utilizam invariavelmente a
seguinte táctica: primeiro chamam vaca a um porco, e depois acusam-no de
não dar leite. Assim é fácil. Só que, sendo fácil, não é sério, tal
como não pode ser séria a saída do armário de Carlos Abreu Amorim. Se
ele fosse membro do Tea Party, poderia certamente argumentar que a
desregulamentação assolapada dos mercados e o regresso dos bónus
chorudos a Wall Street o tinham feito repensar a sua ideologia, e que
por isso concluíra que o Estado precisava de ser mais forte. Impecável
pensamento made in USA. Mas em Portugal? Não gozem
connosco. Em Portugal não existe Estado forte e economia fraca, nem
Estado fraco e economia forte, pela simples razão de que uma coisa não
se distingue da outra desde 1143. Nesse sentido, ainda vivemos num mundo
pré-ideológico. Enquanto não se nacionalizar o Estado e privatizar a
economia, Carlos Abreu Amorim continuará a sair de um armário que não
existe.
IN "PÚBLICO"
23/12/14
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