Minha querida UCR!
. (Olá, PREC!)
Canelas, freguesia de Vila Nova de Gaia,
13 000 habitantes, contas graúdas. Tal como se contam a olho as cerca de
1000 pessoas levantadas pela manhã de domingo para um ensaio de motim
popular à porta da paróquia, também nessa manhã se contou a velha
história do olho por olho, dente por dente.
Descontentes com a
rotatividade (a rotatividade, sim, sempre a rotatividade...), imposta
pela diocese do Porto ao impor a saída do pároco Roberto Sousa,
invocaram a Lei de Talião sacada da profundidade das mais antigas leis
da Babilónia, tentando impedir a realização da primeira missa do padre
suplente Albino Reis de seu nome, nova aquisição imposta pelos fariseus
da diocese da metrópole. Do descontentamento ao tumulto, do levantamento
à agressão, a fúria só se liga ao redutor pela presença de uma força
activa da GNR, destacamento especial para a protecção da homilia, do que
é mais sagrado e do novo padre recém-chegado ao seu pequeno novo
inferno.
O movimento "Uma Comunidade Reage!" (UCR!), criado por cidadãos
crentes e não crentes na rotatividade da fé, exclama toda a indignação
por razões que só as relações de proximidade explicam. Afectos,
portanto.
Poucos metros à frente, o singular coreto desenhado por
Gustave Eiffel continuava belíssimo, de pedra e cal, com a sua saúde de
ferro. Tal crime, tal pena, clama-se a plenos pulmões ao seu redor. Uma
comunidade unida à hora da missa, 40 pessoas no interior e 1000 em
exaltação do lado de fora. A bradar aos céus. E assim saiu Albino Reis
de seu nome, padre, escoltado pela GNR até uma carrinha de segurança que
o levou até parte incerta em nome de Deus e da fúria que a fé convoca.
Convenhamos que não foi por falta de aviso: desde que a diocese do Porto
ordenou, a 24 de Julho, a substituição do pároco de Canelas, a UCR!
(olá, PREC!) já havia realizado várias acções de protesto e recolhido
cerca de 6000 assinaturas para exigir que não levassem o que consideram
como seu, o seu santo no altar, o seu padre Roberto. Tentando fechar o
portão da igreja, usaram as chaves do culto e cuidaram do cofre até à
chegada das forças policiais. Tivesse a GNR dado um ar da sua graça no
Coliseu quando Pedro Abrunhosa, entre outros, se acorrentou ao edifício
ou quando ocupantes como Regina Guimarães invadiram o Rivoli contra a
fúria pop-chunga de La Féria e a cultura não seria a mesma na Área
Metropolitana do Porto. A força do povo vs. força divina, já imagino o
caso num tribunal de Polícia.
O desenho da fé move-se por caminhos
misteriosos. O afastamento de um pároco, tantas vezes visto como um
elemento agregador e quase de família, em nome da rotatividade dos
números e, admito, de alguns princípios que posso considerar positivos,
não pode ocorrer como uma fatalidade divina. Como se um padre fosse
eleito, como se fosse a votos e sujeito a escrutínio em urna, como se de
um cargo público da maior importância para o Estado de Direito se
tratasse. Terá de haver excepções. E a excepção é a manutenção, não o
inverso. Não há ciclos eleitorais numa diocese que afastem párocos do
seu rebanho com esta crueldade. Se as pessoas não querem, por que tantos
teimam em querer tanto contra as pessoas quando estão em causa questões
afectivas, costumes e apego? Rotatividade na fé, pior ainda.
Quem
vos escreve, querida UCR!, é um não crente, um vosso vizinho. Podem
chamar-me agnóstico já que, como qualquer mortal, desconheço as
respostas finais para dúvidas fundamentais. E não acredito; certo é que
não terei a fé que vos une. Mas sei que a vossa luta não é contra o
padre Albino Reis de seu nome. Ao que julgo saber ele não terá sido
convocado para o purgatório da substituição pela sua livre e espontânea
vontade, nem terá procurado invadir o vosso agora pequeno inferno. A
vossa luta, querida UCR!, é semelhante à de tantas pessoas que ainda
acreditam numa lógica de proximidade, aquela vida onde as pessoas se
conhecem melhor olhos nos olhos e não olhando por cima do ombro dos
outros.
O tumulto interior que levantam é em tudo semelhante àquele que
não suporta a perda ou o afastamento de entes queridos, tanto para o céu
quando falecidos, como para o estrangeiro enquanto vivos. O vosso
desassossego é-me completamente familiar. Mas livrai-nos do mal, sim?
Confessem lá.
IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
11/11/14
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