O manicómio
Retomo
o que já anteriormente escrevi. Navegar por entre a teia kafkiana da
legislação aplicável aos concursos de professores é um desesperante
exercício de resistência. Só legisladores mentalmente insanos e
socialmente perversos a podem ter concebido, acrescentando sempre uma
nova injustiça à anteriormente perpetrada. Leiam as 1347 páginas das
listas de subcritérios, agora tornadas públicas, verdadeiro hino à
liberdade de disparatar, e ousem dizer-me que não tenho razão.
Os
concursos de professores tornaram-se coreografias sinistras, danças
macabras de lugares para despedir docentes. É isso que está em causa.
Não as reais necessidades das escolas, muito menos as do país vindouro.
A
distorção nas representações sobre as condições de exercício da
profissão docente, ardilosamente passada pelo Governo para a sociedade
em geral, atingiu o limite do suportável e ameaça hoje a própria
integridade profissional dos professores, que não se têm afirmado
suficientemente vigorosos para destruir estereótipos desvalorizantes.
Com tristeza o digo, mas a classe dos professores manifesta-se cada vez
mais como uma classe de dependências. E quem assim se deixa aculturar,
dificilmente compreenderá o valor da independência e aceitará pagar o
seu custo.
Quando o Papa proclama, em boa hora, que não há mães
solteiras, mas tão-só mães, nós, classe docente desunida, demoramos,
primeiro, e somos inconsequentes, depois, a dizer que não há professores
de primeira e professores de segunda, mas tão-só professores. Caímos na
armadilha de calar as aspirações legítimas de uns com o retrocesso das
aquisições de outros, contentes por termos evitado o vandalismo maior
que o Governo projectava para todos. Enquanto isto, a colega de Bragança
enche o carro com as tralhas de mais uma mudança de casa e ruma a Vila
Real de Santo António, engolindo a raiva. Sem que uma solidariedade
operante, atempada, impeça que a calquem.
O que este Governo mudou
no sistema de ensino português terá consequências cujo alcance não está
a ser percebido pela maioria dos portugueses. Mas há um universo, o dos
professores, que se assume como espectador num processo em que é actor.
Por omissão, concedo. Com gradientes diversos de responsabilidade,
volto a conceder. Mas com o ónus global de não dizer não. Um não
veemente quanto necessário para pôr cobro aos dislates de uma política
que nos reconduz ao passado e nos recusa o futuro. A crise financeira e
económica não justifica o pacifismo reinante face à crise da democracia.
Os sindicatos, as associações profissionais, os directores de escola e
os professores, pese embora o que têm feito, o que dizem e escrevem,
acabam por ser espectadores num processo em que, historicamente, serão
julgados como actores. Actores de uma tolerância malquista, que vai
poupando a besta que não os poupa.
A arrogância, o ódio aos
professores, a ignorância sobre a realidade do sistema educativo e das
escolas e a impreparação política e técnica são os eixos identificadores
daquilo que poderemos designar por bloco central de governo da Educação
da última década. Se apelarmos à memória, salta à vista a convergência
ideológica entre Maria de Lurdes Rodrigues e Nuno Crato, relativamente
ao papel dos professores. Uma ou outra divergência quanto a processos
não apaga o essencial. Do outro lado da barricada, a classe dos
professores não interiorizou, enquanto tal, a dimensão política da sua
profissão. E, em momentos vitais das lutas a que tem ido, soçobrou por
isso.
Professor universitário
PÚBLICO
08/10/14
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