Temos jurisprudência talibã
sobre o prazer feminino
O "Público " de ontem noticiou um caso da nossa justiça que merece um grito coletivo.
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Foram necessários dezanove anos para que a Maternidade
Alfredo da Costa fosse condenada pelo Supremo Tribunal Administrativo
(STA) a pagar uma indemnização de 111 mil euros a uma mulher operada a
um problema ginecológico banal. Acontece que a mulher ficou com uma
incapacidade permanente de 73% e lesões irreversíveis que a impediram de
voltar a ter relações sexuais com normalidade. A primeira instância
tinha determinado uma indemnização de 172 mil euros.
Ou seja, a indemnização foi reduzida.
E por quê?
Afinal não estava provada a incapacidade da doente? Afinal não estava provado o seu sofrimento?
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Estava. Estava tudo provado, mas os digníssimos
magistrados do STA baixaram em milhares de euros o valor da indemnização
decidida pela primeira instância, alegando que, à data da operação, a
doente tinha 50 anos e que nesta idade "a sexualidade não tem a
importância que assume em idades mais jovens". Essa importância "vai
diminuindo à medida que a idade avança", sustentam.
Provado o erro médico e as consequências, que foram
muitas para além da impossibilidade de uma vida sexual normal (como
continência urinária e fecal), eis que no Portugal de 2014, com uma
Constituição que assegura o direito ao desenvolvimento da personalidade,
com todos os direitos sexuais e reprodutivos inerentes, no Portugal
inserido da União Europeia e no Conselho da Europa, no Portugal membro
da ONU, no Portugal que teve a honra de ser o primeiro país a assinar a
Convenção de Istambul, eis que uma mulher leva uma tareia
anticivilizacional pela pena da justiça.
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Gostava muito de perguntar aos magistrados em questão
como julgariam - se tivessem competência para isso - um caso de
mutilação genital feminina tal como ele está ainda previsto no Código
Penal. Isto é, se esta mulher visse o seu corpo ofendido, nas palavras
do artigo 144º/b daquele código, "de forma a que afetada, de maneira
grave, a capacidade fruição sexual".
Imagino que não teriam o tipo penal por preenchido, já
que isto de se chegar aos 50, é momento para a mulher se dedicar à
costura, pelo que mesmo mutilada a canivete por um selvagem, ficaria por
demonstrar a "gravidade" da afetação da fruição sexual.
No ano em que entrou em vigor a Convenção de Istambul
que versa sobre todas as formas de violência contra as mulheres, a
justiça portuguesa fez jurisprudência talibã sobre o prazer feminino.
* Deputada à A.R.
IN "EXPRESSO"
18/10/14
N.R. - Raramente nos pronunciamos sobre a opinião dos articulistas que escolhemos para inserir nas nossas páginas. Mas este caso é gritante de vexame e salvo raríssimas excepções ainda não sentimos a revolta de personalidades, associações, sindicatos, ONG's, partidos políticos, Ordens de profissionais, etc. O acordão do Supremo Tribunal Administrativo envergonha qualquer cidadão que tenha consciência do que é o respeito humano.
Obrigado sra. deputada por este texto.
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