21/10/2014

ISABEL MOREIRA

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Temos jurisprudência talibã
 sobre o prazer feminino

O "Público " de ontem noticiou um caso da nossa justiça que merece um grito coletivo. 
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Foram necessários dezanove anos para que a Maternidade Alfredo da Costa fosse condenada pelo Supremo Tribunal Administrativo (STA) a pagar uma indemnização de 111 mil euros a uma mulher operada a um problema ginecológico banal. Acontece que a mulher ficou com uma incapacidade permanente de 73% e lesões irreversíveis que a impediram de voltar a ter relações sexuais com normalidade. A primeira instância tinha determinado uma indemnização de 172 mil euros.

Ou seja, a indemnização foi reduzida. 

E por quê?

Afinal não estava provada a incapacidade da doente? Afinal não estava provado o seu sofrimento? 
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Estava. Estava tudo provado, mas os digníssimos magistrados do STA baixaram em milhares de euros o valor da indemnização decidida pela primeira instância, alegando que, à data da operação, a doente tinha 50 anos e que nesta idade "a sexualidade não tem a importância que assume em idades mais jovens". Essa importância "vai diminuindo à medida que a idade avança", sustentam.

Provado o erro médico e as consequências, que foram muitas para além da impossibilidade de uma vida sexual normal (como continência urinária e fecal), eis que no Portugal de 2014, com uma Constituição que assegura o direito ao desenvolvimento da personalidade, com todos os direitos sexuais e reprodutivos inerentes, no Portugal inserido da União Europeia e no Conselho da Europa, no Portugal membro da ONU, no Portugal que teve a honra de ser o primeiro país a assinar a Convenção de Istambul, eis que uma mulher leva uma tareia anticivilizacional pela pena da justiça.
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Gostava muito de perguntar aos magistrados em questão como julgariam - se tivessem competência para isso - um caso de mutilação genital feminina tal como ele está ainda previsto no Código Penal. Isto é, se esta mulher visse o seu corpo ofendido, nas palavras do artigo 144º/b daquele código, "de forma a que afetada, de maneira grave, a capacidade fruição sexual". 

Imagino que não teriam o tipo penal por preenchido, já que isto de se chegar aos 50, é momento para a mulher se dedicar à costura, pelo que mesmo mutilada a canivete por um selvagem, ficaria por demonstrar a "gravidade" da afetação da fruição sexual.

No ano em que entrou em vigor a Convenção de Istambul que versa sobre todas as formas de violência contra as mulheres, a justiça portuguesa fez jurisprudência talibã sobre o prazer feminino.

* Deputada à A.R.

IN "EXPRESSO"
18/10/14


N.R. - Raramente nos pronunciamos sobre a opinião dos articulistas que escolhemos para inserir nas nossas páginas. Mas este caso é gritante de vexame e salvo raríssimas excepções ainda não sentimos a revolta de personalidades, associações, sindicatos, ONG's, partidos políticos, Ordens de profissionais, etc. O acordão do Supremo Tribunal Administrativo envergonha qualquer cidadão que tenha consciência do que é o respeito humano. 
Obrigado sra. deputada por este texto.


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