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IN "OBSERVADOR"
28/08/14
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As modernas
ilusões democráticas
A “representação” política é largamente uma ficção, mas uma ficção
útil, a melhor que se descortinou até hoje para tentar harmonizar os
interesses contraditórios que dividem todas as sociedades.
No início dos anos 70 do século XIX, Oliveira Martins, no rescaldo de
um golpe miliar que reeditou a tradição anterior a 1851 de remover
governos pela amotinação ou pela intervenção militar, escreveu
bombasticamente: “O sistema parlamentar acabou em Portugal.” O
interessante é notar que em seu entender este veredicto se aplicava ao
país independentemente do recurso à violência política, que em si mesma
constituía uma negação democrática. A razão da intensa instabilidade
política e governativa que marcou o século era outra, e bem simples: “Os
representantes da nação não representam nunca nem as aspirações nem a
vontade do país.” O rei e a sua coterie de “rotativos”, como se chamava
aos dois partidos que alternavam no poder, dispunham, à sombra das
disposições constitucionais, do destino de 4 a 5 milhões de portugueses,
esmagadoramente analfabetos e, por conseguinte, presas fáceis das
maquinações eleitorais que, com uma só excepção, davam a vitória nas
urnas invariavelmente ao governo em funções.
Ao tempo em que Martins escrevia, as formas mais escabrosas de fraude
eleitoral já haviam caído em desuso entre nós, substituídas, aqui e
ali, por inocentes chapeladas mas, sobretudo, por um acordo entre os
“marechais” dos partidos, que combinavam entre si as vitórias ou
derrotas na maioria dos círculos eleitorais. O discernimento dos
eleitores não melhoraria com a prática introdução do sufrágio universal
masculino por Fontes Pereira de Melo, em 1878. Martins não tinha sobre
esta matéria uma opinião muito original: “a grande massa da população
rural (que) não conhece e por isso não pode usar do direito de eleição
que tem”, um mal que só teria remédio quando a sociedade se
transformasse numa “associação de cidadãos cientes e dispostos ao
governo de si próprios, que isso e só isso é a democracia.” Este ideal,
porém, era entre nós, por ora, utópico – “Impossível”, decretou Martins
há 150 anos. Aliás, desde a chamada “revolução” liberal de 1820 que a
restrita elite portuguesa se queixava da impreparação dos nativos para o
regime constitucional, que exigia, para que fosse genuíno, um grau de
politização e cultura que não estava ao alcance dos portugueses.
Rodrigo da Fonseca, que Martins acusou de “cínico” e “corruptor”,
para além de que passou à História como um “céptico” lendário, tinha
afinal uma opinião mais optimista sobre as capacidades de homens
analfabetos. Perguntados um a um, individualmente, sobre o que mais
convinha ao seu bem-estar e ventura, poucos saberiam responder ao certo;
mas nas suas manifestações colectivas, o “instinto do povo” raramente
se enganava. Talvez fosse uma antiga condescendência paternalista. Mas o
importante é que Rodrigo, um impecável liberal, não era turvado pela
ideologia democrática que no século XIX contagiou muita gente culta com a
crença na possibilidade de os homens se governarem realmente a si
mesmos – a crença no auto-governo.
A história do século XIX, apesar de sangrentas e malogradas
tentativas para depositar o poder na cabeça e nas mãos de cada um, não
enterrou a nostalgia do que fora a essência do sonho da democracia
directa, ou seja, o desejo de ser governado por um poder visto como
nosso, cujos actos emanassem da nossa vontade e correspondessem, assim,
às nossas aspirações e necessidades pessoais. A Democracia
Representativa, uma engenharia destinada a conciliar a consideração do
Interesse Público e Geral com um sentimento (mínimo) de participação
política, justificado por regulares consultas eleitorais conducentes à
formação de Parlamentos, pelo direito de petição e associação, pela
faculdade de criação partidária e pela liberdade de imprensa, revelou-se
uma fonte de frustrações e decepções, que conduziu à progressiva
desqualificação da classe política, alvo de uma repugnância não muito
diferente da que envolvia os desprezados políticos do séc. XIX. As
elevadas abstenções eleitorais confirmam um crescente desinteresse pela
coisa pública, fomentado pela fatal incapacidade de elegermos governos
em que nos possamos rever pessoalmente – como se fôssemos nós que “lá”
estivéssemos.
E eis que, chegados à época em que emerge uma geração da qual se diz
que é “a mais bem preparada de sempre”, Oliveira Martins poderia
repetir, incluindo agora as grandes massas urbanas, o que citei no
início deste texto. A ilusão democrática – a ilusão representativa – não
apenas não desapareceu como adquiriu nova vida, a avaliar pelo
constante queixume de que os governos não passam de emanações de
partidos que nos enganam com promessas falsas e apenas tratam dos seus
interesses. A crítica tem razão de ser, embora não corresponda em
absoluto à verdade. Mas falta compreender que a “representação” política
é largamente uma ficção, mas uma ficção útil, a melhor ou menos má que
se descortinou até hoje para tentar harmonizar os interesses
contraditórios que dividem todas as sociedades. É frustrante? Será (para
quem tenha ilusões), mas protege-nos da ditadura de “vanguardas” que
fatalmente usurpam o poder em regime de democracia directa, e depois
tiranizam as maiorias que lhes abriram o caminho e confiaram o mando.
Foi assim nas Grandes Revoluções modernas, de Robespierre a Pol-Pot, foi
assim na República Espanhola e até, em boa medida, na Iª. República
Portuguesa.
IN "OBSERVADOR"
28/08/14
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