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IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
29/08/14
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Ébola, nome de hipocrisia
Menos de 10% da
despesa mundial em investigação em saúde é dedicada aos mais graves
problemas de saúde que afetam mais de 90% da população do mundo. As
doenças negligenciadas - sejam as chamadas doenças raras sejam sobretudo
as grandes epidemias do mundo pobre, como a malária ou o ébola - são o
rosto de uma biopolítica global conduzida pelo primado do lucro da
indústria farmacêutica.
Há surtos de ébola em África desde, pelo
menos, 1976. Sucedesse isto em Inglaterra, nos Estados Unidos ou no
Japão e há muito se teriam dado os passos para a produção de uma vacina.
O problema do ébola é ser, por agora, uma doença de africanos em
África. No momento em que ela foi contraída por dois profissionais de
saúde norte-americanos e por um missionário espanhol, o mundo começou a
mobilizar-se. Porque ganhou medo. O Banco Mundial prometeu logo 200
milhões de dólares aos quatro países africanos mais afetados e Obama
assumiu, na cimeira com cinquenta líderes daquele continente, o
compromisso de atribuir 33 mil milhões de dólares para ajuda às
economias africanas. É mais do que ironia que os Estados que agora
prometem ajuda sejam os mesmos que impuseram uma redução para metade,
entre 2012 e 2014, do orçamento da Organização Mundial de Saúde dedicado
a respostas a surtos epidémicos.
Bastou um missionário espanhol e
dois profissionais de saúde norte--americanos. Os 1500 africanos mortos
neste surto mais recente - e os muitos mais que os números oficiais não
registam -, esses são estatísticas sem nome e sem rosto. A sua falta de
poder económico faz deles uma mancha que alastra e ameaça mas nunca um
mercado que cresce e estimula. E os alarmes de interesse dos potentados
globais do farmoquímico disparam quando há mercados, não quando há
manchas. Além do mais, os africanos infetados são guineenses ou
liberianos, não são espanhóis nem americanos. Por isso se louvou a
prontidão da mobilização de meios - incluindo aviões medicalizados e
administração de medicamentos ainda não aprovados - usados pelos
governos espanhol e americano para resgatar e salvar os seus. Mas não se
disse que o avião que trouxe Miguel Pajares e uma outra freira com
passaporte espanhol para Madrid deixou em terra duas missionárias, uma
congolesa e outra guineense, que trabalhavam no mesmo hospital de
Monróvia.
O dinheiro prometido pelo Banco Mundial é um penso
rápido numa chaga que os programas de ajustamento estrutural que essa
organização impôs, juntamente com o FMI, nestes mesmos países africanos
nos anos 80, alimentaram multiplicando pobreza e condenando à
inexistência sistemas públicos de saúde capazes para servirem as suas
populações.
E os milhões prometidos por Obama são dados (serão?)
não a pensar no direito dos liberianos ou guineenses à saúde e ao
bem-estar mas sim na resposta ao medo de contágio dos americanos, sempre
apologistas da liberdade de circulação de tudo menos dos pobres que
fogem da morte nas suas terras. A ajuda pública ao desenvolvimento tem
esse rosto cínico de biopolítica de contenção dos pobres, aquietando-os,
castigando a sua turbulência e sobretudo prevenindo supostos estragos
que possam trazer ao modo de vida instalado no centro do mundo.
Tal
como sucedeu com a sida, o ébola terá de matar gente rica, dos bairros
luxuosos das nossas cidades, para que enfim se ponha o conhecimento
científico existente ao serviço de quem sofre. Até lá, o ébola - como o
terrorismo ou a perda de biodiversidade - será um pretexto para o mundo
rico intensificar a contenção dos pobres no seu gueto global.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
29/08/14
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