ESTA SEMANA NO
"EXPRESSO"
"EXPRESSO"
Isto tem tanto de arrepiante como de fascinante. São os primórdios das tatuagens em Portugal
O Expresso teve acesso exclusivo a dezenas de peles humanas tatuadas, conservadas em formol, com imagens e datas que as remetem para os finais do século XIX e inícios
do século XX, quando a tatuagem era um território de marinheiros,
militares e criminosos. Esta é uma verdadeira viagem no tempo.
Depósito de peles tatuadas no Instituto de Anatomia da Faculdade de Medicina de Lisboa |
Não se impressione assim tanto. O conteúdo do recipiente com peles humanas conservadas em formol a que o Expresso
teve acesso tem tanto de arrepiante como de enigmático e fascinante.
(E, caro leitor, tem uma vantagem em relação a nós - não tem de aguentar
o intenso cheiro a formol que veio junto com aqueles retalhos de pele)
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São sinais de um passado português remoto que
resistiram ao tempo no Instituto de Anatomia da Faculdade de Medicina de
Lisboa, situado nas instalações do Hospital de Santa Maria. São marcas
antigas na pele que contam os primórdios da tatuagem em Portugal.
Algumas percebem-se claramente que foram feitas no peito. Outras poderão
ter sido feitas nos braços, nas pernas e em tantas outras partes do
corpo, mais íntimas. A nosso pedido, Pedro Henriques, técnico do
Instituto, estendeu na bancada da sala de preparação as peças
anatómicas, deixando claro que nada sabe sobre as suas identidades e
proveniências e que ali permaneceram por acaso. Porque foram ficando.
"No passado, os cadáveres que vinham para aqui eram de indigentes,
pessoas não identificadas. Eventualmente criminosos. As zonas de pele
tatuadas eram retiradas dos corpos dos cadáveres para evitar a sua
identificação quando fossem dissecados ou usados em estudos. Ainda hoje o
procedimento é o mesmo. Gostava de um dia expor estas tatuagens antigas
no teatro anatómico."
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Quem foram aquelas pessoas? Que significados e códigos
sociais tinham as inscrições na pele e a que grupos pertenciam? As
respostas poderão estar num documento de 1882 publicado na "Revista de
Ciências Naturais e Sociais", com assinatura do conceituado etnógrafo
português Rocha Peixoto, que escreveu sobre a tatuagem naquela época.
Nesse tempo era também chamada 'mutilação': "A permanência nas prisões,
nos navios e nos quartéis, dando lugar a períodos de grande ociosidade,
origina tão pouco a persistência fecunda do costume". Uma questão parece
clara, a tatuagem era essencialmente território de rufias e marginais.
"A multiplicidade, a sede de ordinário escolhida nas regiões do corpo
vulgarmente ocultas, a intenção pornográfica de uma grande percentagem
de desenhos, denunciam a insensibilidade à dor, o impudor e a
obliteração, ou melhor, a ausência de elevação moral da maior parte dos
tatuados", diz o investigador Rocha Peixoto.
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Neste artigo, mostramos-lhe as imagens de tatuagens
feitas há dois séculos e revelamos-lhe os seus significados, numa época
em que ninguém sonharia que tatuar na pele passaria a ser uma moda
massificada, para homens e mulheres. Esta é parte de uma reportagem
sobre a história da tatuagem ao longo dos tempos em Portugal, publicada
este sábado na Revista.
A PORNOGRAFIA NA PELE
A maioria dos desenhos toscos feitos na pele destes
antepassados foram concretizados com agulhas, tinta da china ou carvão
triturado e em suspensão na água. Ilustram sereias, bailarinas, mulheres
desnudas, com formas redondas, cabelos longos, saltos altos e meias
pelo joelho. São símbolos de volúpia, erotismo e desejo que terão sido
ostentados no corpo por bravos marujos, militares e marginais. Para o
sociólogo Vitor Sérgio Ferreira, investigador do Instituto de Ciências
Sociais, as tatuagens de mulheres despidas, com os seios e púbis
desenhada, "eram a pornografia da época, a ligação dos homens às
prostitutas e às amantes - elementos biográficos partilhados em grupo".
Contemporâneo da época em que terão sido feitas essas
tatuagens, o investigador Rocha Peixoto afirma que os "emblemas amorosos
e eróticos" eram dos que mais predominavam nos nossos tatuados do
século XIX. "As eróticas são numerosas e encontram-se quase
exclusivamente nos que habitam assiduamente as prisões (...). As mais
vulgares são os falos, ornamentados por vezes, outras pretendendo acusar
uma erecção burlescamente exagerada. As tatuagens de alguns
encarcerados da Penitenciária de Lisboa - um homem nu com um erotismo de
Sátiro na perna esquerda e uma mulher nua na direita - são comuns nesta
ou em outras partes do corpo. As mulheres são ordinariamente desenhadas
sob formas rotundas; num tatuado que examinei recentemente havia no
antebraço esquerdo a figura de uma mulher em que a preocupação dominante
fora a amplitude dos seios, do ventre e das nádegas; no antebraço
direito um homem igualmente nu com o órgão sexual característico de
dimensões quase iguais às de todo o desenho. O distinto médico-alienista
de Lisboa Dr. Júlio de Matos informou-me que tivera notícia de um
tatuado que fizera desenhar no braço esquerdo um Cristo com um falo em
erecção de dimensões desproporcionadas".
CRISTO QUE OS PROTEJA
Os amuletos e símbolos religiosos e protectores eram outras das
tatuagens recorrentes no passado. Cristos e cruzes que chegavam a rasgar
o peito, em enormes dimensões para os proteger dos males. Especialmente
nos indivíduos não criminosos. "Os dois traços da cruz ou cinco pontos
representando as cinco chagas de Cristo, as letras INRI sobrepostas aos
dois cravos cruzados com que pregaram as mãos do Senhor no madeiro, são
as mais simples e ingénuas. Vêm seguidamente as cruzes ornamentadas, com
a coroa de espinhos ao través, a legenda que diz de que povo Jesus era
rei, pedestais onde o crânio e dois fémures significam a inelutável
certeza do fim derradeiro. Os Cristos, numerosíssimos, são de ordinário
acompanhados de emblemas que contam pitorescamente toda essa adorável
história de resignação no martírio", explica Rocha Peixoto.
Desde tempos remotos que os marinheiros e pescadores investiam no rito
da tatuagem, uma moda grupalista feita, muitas vezes, nas longas
permanências no mar alto, em que o corpo era usado como um diário de
bordo autobiográfico. "A tatuagem era coisa de classes populares, um
desafio físico e social ligada à boémia, a delinquência, ou à marinhagem
e exército e os símbolos de uma gramática linear e fácil de
interpretar", resume o investigador Vítor Sérgio Ferreira. Nos homens
embarcados, os símbolos mais comuns eram a âncora, a rosa-dos-ventos, o
barco e o mar revolto ou a sereia, a figura feminina meio mulher, meio
peixe sempre presente no imaginário destes marujos.
As feras, as serpentes e outros animais exóticos indicavam uma atitude
de coragem, vigor para afastar os inimigos. Como quem dizia 'Chega-te
para lá que eu não sou manso'. É o que diz o investigador Vítor Sérgio Ferreira: "Os
animais selvagens gravados na pele traduziam não só a experiência em
guerras em África, como serviam para passar agressividade, força e
servir de protecção e defesa face ao outro".
No século XIX não era raro encontrar corações trespassados por setas,
escritos amorosos e mãos que se cumprimentam, em sinal de agradecimento e
gratidão. Apesar dos símbolos eróticos serem bem mais comuns nos
tatuados da época, o amor e a amizade eram também eternizados na pele
por alguns. "As paixões humanas mais elevadas explicam ainda entre nós
algumas tatuagens representativas da amizade filial, de várias
recordações gratas, de amor, até, em alguns casos: certos operados em
que se encontram simples corações escolhiam este desenho com um sentido
oculto e honesto dirigido à mulher estimada. Mas geralmente o instinto
erótico é o motivo fundamental das figuras amorosas e, naturalmente, das
pornográficas", escreveu Rocha Peixoto, Que chamou a atenção para o
facto de a maioria dos tatuados não saber escrever e usar a tatuagem
como forma rudimentar de comunicação. "É necessário reconhecer, com
Lassagne, a necessidade das pessoas analfabetas em exprimirem por
figuras ou símbolos as ideias que não podiam representar de outra arte,
facto tão remoto que, como geralmente se sabe, antes da invenção da
escrita já o pensamento era transmitido pelo hieróglifo". Os astros, as
flores, os animais, a âncora, o navio, o tambor e todas as marcas
profissionais enfim são representações objectivas de ideias cuja
transmissão mal fariam de outro modo."
EM NOME DA PÁTRIA
Por amor e devoção à pátria surgiam na época tatuagens com os símbolos
da Monarquia Portuguesa e mais tarde da Primeira República. Terão sido
muitos deles militares combatentes. Nesta imagem, o símbolo da
monarquia está combinado com uma homenagem a uma tal "Maria de Jesus",
em 1914. Era comum os símbolos patrióticos surgirem ao lado de cruzes de
Cristo que recordavam os camaradas que tombaram na guerra dos Boer
(ocorrida na África do Sul entre 1880 e 1881 e 1899 e 1902). Rocha
Peixoto chega a escrever com detalhe como era a técnica da tatuagem na
época: "Com três agulhas solidamente fixas a um pequeno cabo de madeira
ou simplesmente ligadas e unidas por um fio, e tinta-da-china de
escrever ou carvão triturado e em suspensão na água, tem o operador com
que levar o efeito à prática (...). Para impedir a inflamação e a febre,
mesmo quando aquela é irritante, o operador adopta como tópico a saliva
ou a urina, sendo manifesto que nada remedeia com tal terapêutica.
Quinze dias passados, quando muito, estão extintos os vestígios da
irritação passageira que a operação provocou e a nitidez do desenho é
então definitiva e provavelmente indelével".
* Extraordinário trabalho de
.
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