Autoridade proibida
Os tempos mudaram no que diz respeito ao conceito de autoridade, disciplina, punição
Tu sentas-te e não te levantas sem ordem da reitoria!” A voz contundente
escondida por detrás de um ameaçador dedo em riste; uns óculos grossos
com minúsculas pupilas no meio e cadenciados passos rangentes. Ainda
hoje incomoda a injustiça e desproporção da ordem. Durante os sete anos
de Liceu, a reitoria foi sempre um lugar a evitar. Passava-se à porta em
passo rápido e leve não fosse de lá sair a figura temida… Outras vozes
mais afectivas ajudaram a construir a noção de autoridade. “Hoje vais
para a escola. A partir de agora, respeitas a senhora professora como a
mim e a tua mãe. Livra-te de lhe faltares ao respeito!…” Era assim há
cinquenta e mais anos… Hoje é muito diferente. Já não há reitorias nas
escolas, nem a sua carga autoritária, impositiva de obediência submissa.
Em democracia, a construção da autoridade radica na liberdade, a mola
inspiradora das relações interpessoais e no respeito que todas as
pessoas igualmente merecem: na escola, na família, na sociedade; o que
não dispensa a observância de normas democraticamente aprovadas,
infelizmente subvertidas pelo clima de desrespeito, incivilidade e
violência de muitas escolas e a atitude agressiva de certos pais em
relação aos professores, corrosiva até para a sua própria autoridade
junto dos filhos. Não é de admirar o desânimo dos muitos professores que
querem abandonar a profissão docente, frustrados e desmoralizados
também por uma alienada e oca burocratização da escola…
“Fiquem com a minha filha” lia-se num jornal, de uma mãe farta dos
problemas com a filha adolescente. Sobressalta sempre, saber de idas da
polícia em socorro de instituições com uma base moral e uma
responsabilidade social tão forte como a família ou a escola, municiadas
que deveriam estar para no seu seio e por si próprias resolver
conflitos relacionais. Inquieta haver pais que confessam não conseguir
lidar com filhos de dois anos! Sabe-se com inquietante frequência de
contextos de violência familiar, caldo de cultura pernicioso,
transversal em termos de estrato social, ciclo vicioso que por norma
enrola na sua espiral a escola e a comunidade em episódios infelizes,
multiplicadores das patológicas tensões sociais que comprometem o
futuro. Perdemos todos!
Poderá parecer descabido falar-se de autoridade em tempo de democracia e
na sequência da instituição da máxima, “é proibido proibir” que alterou
a hierarquia das relações interpessoais, face a uma nova abordagem do
permitido, tolerado, sendo não raras vezes difícil distinguir a
fronteira entre tolerância e permissividade, - ou nebulosas de
ambiguidade - prefigurando antes indiferença, comodismo,
desresponsabilização, manipulação, com naturais reflexos no contexto
familiar e escolar. À luz de modernos conceitos de direitos e deveres de
cidadania, sobrepôs-se a noção de bem-estar à ideia de autoridade, quer
no relacionamento pais-filhos, quer entre alunos-professores.
À
autoridade associou-se tudo o que é temido, logo desagradável. Tornou-se
politicamente incorrecto dizer aos jovens o que devem ou não fazer,
desde a adolescência. Entendeu-se que para uma harmoniosa construção da
sua personalidade, devia ser-lhes dado alguma liberdade de movimentos e
acção… Tornou-se complexo estabelecer normas de conduta, padrões de
comportamento, valores, face às muitas pressões dos grupos de amigos,
necessários também ao seu desenvolvimento e integração social. Com os
resultados à vista.
Os tempos mudaram no que diz respeito ao conceito de autoridade,
disciplina, punição. Não é mais defensável a aplicação das ancestrais
sovas de pais déspotas. Nem o regresso à autoritária palmatória. Porém
não podemos deixar de nos colocarmos algumas questões. Deve-se dar
sempre tudo o que os filhos pedem? Deve-se rir, ou repreender a criança
quando diz palavrões ou procede mal? Deve-se arrumar tudo o que os
filhos deixam pelo chão; livros, sapatos, jogos, roupa, ou deve-se
habituá-los a serem responsáveis pelas suas coisas desde cedo? Deve-se
dar-lhes todo o dinheiro que pedirem, satisfazer-lhes todos os prazeres,
desejos e apetites, ou habituá-los desde cedo a algum comedimento,
contenção, frustração, austeridade? Devem os pais pôr-se unilateralmente
sempre do lado dos filhos em qualquer conflito com familiares,
vizinhos, professores…? E, na escola, o que fazer com a inquietante
agressividade e violência, que por vezes quase prefigura
pré-delinquência e amarfanha professores em lágrimas e depressões? Qual a
benéfica eficácia das laudas de processos disciplinares, na mudança de
atitudes e comportamentos para a cidadania?
Não é fácil também a vida das famílias nos dias de hoje. Tão depressa
são acusadas de negligenciar os seus filhos como ameaçadas de serem
deles privadas por hipotético abuso, ou por carências e conflitos… A
família tem vindo a sofrer alterações profundas, com as naturais
consequências na sua coesão afectiva, emocional e relacional. E os
filhos não trazem manuais de instruções, nem a sabedoria parental se
adquire por inspiração divina. Aprende-se fazendo, errando e
acertando...
A construção assertiva da autoridade que educa, significa
muitas vezes ter que limitar, recusar, impor regras, aplicar sansões
reparadoras, em nome do bem-estar de todos de que o destinatário é o
primeiro beneficiado, embora à partida não o compreenda. E, dizer NÃO.
Na família e na escola. Sem acusações, recriminações, ou passa-culpas!
Ajudará a partilha e assumpção de responsabilidades, se possível com
saudáveis cumplicidades e parcerias, mas sem demissões, invasões ou
intrusões. Em educação e democracia, autoridade será isto. Difícil? Sim!
Proibido?
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS DA MADEIRA"
26/05/14
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