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IN "A BOLA"
23/03/14
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José Medeiros Ferreira:
o desportista,
o político,
o intelectual
Faleceu, no
passado dia 18, deste primaveril mês de Março, o José Medeiros Ferreira,
meu colega de curso, na Faculdade de Letras de Lisboa.
Era eu
então (primeiros anos da década de sessenta) funcionário do Arsenal do
Alfeite e, ao abrigo do artigo 4º. do Decreto 19478, podia frequentar as
aulas dois dias, por mês. Só que estes dias eram-me descontados nas
férias e, assim, durante doze anos (os anos que levei, como
trabalhador-estudante a fazer o liceu e a licenciar-me) nunca me foi
concedida, anualmente, mais do que uma semana de licença graciosa. Não
foi casualmente que conheci o Medeiros Ferreira, «caloiro» como eu. Ele
distinguia-se, pelo seu sorriso aberto, talvez até ingénuo e uma ou
outra piada que pareciam manifestar uma sabedoria acumulada, ao longo de
muitos anos de vida, quando ele, de facto, era um jovem de 18 anos de
idade. Aproximei-me do Medeiros Ferreira e, possivelmente ridículo,
lancei-lhe a pergunta: «Onde nasceste?.» Na sua radiante simpatia,
deu-me a resposta: «Nasci, na Madeira, mas sou açoreano.» Calou-se um
segundo e acrescentou pausadamente. «E também sou benfiquista.»
Pelo
futebol, ganhei força para uma conversa mais demorada - conversa que
nunca mais acabou até ao fim dos seus dias! Foi um dos grandes amigos
que a vida me deu. E um exemplo de cidadão, de intelectual, de político.
Um dia, caminhávamos ambos (bem me lembro), indiscretos e alegres, em
direção ao Estádio do Restelo, para vivermos (vivermos, tensa e
intensamente) um Belenenses-Benfica, e eis que me fez esta confissão
inesperada e sentimental: «Não sei o que sinto pelo Benfica. Se calhar é
amor!»
No entanto, amando o Benfica, sentou-se e viveu
ao meu lado um jogo de futebol do seu Clube, sem deixar de aplaudir as
defesas do guarda-redes do Belenenses, nem o golo dos «azuis» (perdemos,
por 1-2). Findo o jogo, não pude reprimir uma palavra de admiração:
«Que encantador era um jogo de futebol, com espectadores, como tu!». E,
de emoção contida, prossegui: «É que eu senti que tu sofreste e, mesmo
assim, não deixaste de aplaudir o que de bonito fizeram os jogadores do
Belenenses». E rematei, a sorrir: «És uma avis rara!»
Era, de
facto (repito-me) um desportista, um intelectual, um político, um
cidadão, sem mácula. Quando regressou do exílio, não se esqueceu de
telefonar ao seu velho amigo: «Manel, vamos reiniciar as nossas
conversas. Não digo a nossa amizade, porque essa, tenho a certeza, nunca
morreu.»
E, frequentemente, almoçávamos (almoços houve em que
foi nosso conviva o Homero Serpa) e fazíamos longos telefonemas, que a
Dra. Maria Emília, sua esposa, não deixou de me referir, com simpatia,
no Palácio Galveias, ao apresentar-lhe os sentidos pêsames: «Quando os
vossos telefonemas eram mais espaçados, eu até estranhava.»
No
Palácio Galveias, encontrei e abracei o Prof. Eurico de Figueiredo, meu
contemporâneo na Assembleia da República e psiquiatra ilustre, que eu
conheci, pessoalmente, ele, em Medicina, nós, o Zé e eu, em Letras, no
refeitório da Cidade Universitária, nos idos anos da década de sessenta.
Disse-me ele: «Estamos aqui a homenagear o profeta dos três D
(Democratizar, Descolonizar, Desenvolver). Lembra-se?»
Lembrava-me
e lembro-me perfeitamente. Foi a tese do José Medeiros Ferreira,
apresentada ao Congresso da Oposição Democrática, em Aveiro, corria o
mês de Abril de 1973, na qual ele anteviu o papel primordial, na
Revolução dos Cravos, das Forças Armadas – que aliás fariam dos três D o
guião do programa do MFA. E (sirvo-me agora das palavras de António
Reis) «por sobre tudo isto, como esquecer o prazer do nosso convívio,
com as tuas piadas certeiras, as tuas estórias, o teu humor tão fino
quanto sarcástico, a tua propensão para as profecias
histórico-conjunturais, tantas vezes, aliás, certeiras» (O Longo Curso – Estudos em Homenagem a José Medeiros Ferreira, Lisboa, 2010, p. 23).
Neste
mesmo livro, o general Pedro Pezarat Correia, um militar distinto,
professor universitário e também oposicionista à ditadura, escreveu:
«Cruzam-se na multifacetada personalidade de José Medeiros Ferreira
diversas dimensões do cidadão interventivo e do intelectual atento e,
porque atento, preocupado com o mundo que o rodeia. Do historiador por
vocação e por formação académica ao político militante por opção de
vida, do investigador por necessidade de encontrar respostas para as
suas inquietações ao divulgador, ensaísta, professor, conferencista,
colunista, comentador, tem sido sempre um homem do seu tempo» (P. 25).
Vítor Serpa, escritor e jornalista e seu admirador e amigo, distinguiu nele «a cultura e a independência». (A Bola, 2014/3/22). Aqui e agora, quero salientar o amigo e o desportista.
O
amigo? O amigo, de facto, que ainda em Maio do ano passado, se sentou
entre os alunos de um seminário de que fui o único docente, no Museu
Nacional do Desporto, durante o qual teve a bondade de afirmar, de viva
voz: «A tese que defendes e criaste merece o meu aplauso público. E por
isso aqui estou.»
Querido amigo, muito obrigado! Continua a
haver, no que faço como «aprendiz de filosofia», um pouco dessa tua
inteligência que nos deixaste em rasto e tantas vezes me revelaste. Como
desportista, o grande poder de vida, colorido e relevo do teu
comportamento moral; o prudente espírito crítico, bem longe de um
clubismo faccioso, adulterador dos factos; a tua tolerância, tão
profundamente humana, que tudo compreendia à luz da razão serena –
mereciam (merecem) um estudo visando provar, de forma convincente e
definitiva, de que o amor a um clube (como o teu, em relação ao Benfica)
não se confunde com qualquer antipatia pelos clubes adversários, com o
desrespeito pela missão do árbitro, com os que proclamam a liberdade
para abafarem a liberdade dos outros. Querido amigo, foste dos grandes
«peritos em humanidade» que eu conheci, ao longo da minha vida... que já
nâo é curta! Se houver céu, relembro o poema do poeta brasileiro: tu,
pedindo licença, para entrar. E a voz acariciante de Deus: «Entra,
amigo! Você não precisa pedir licença!»
Professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto
IN "A BOLA"
23/03/14
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