Reabrir a guerra moral
Pensa o PSD, depois de bloquear a co-adopção, apontar canhões contra a liberdade de abortar e o casamento gay?
É legítimo discutir problemas de organização moral da família num
momento de profundo mal-estar social, em que um quarto da população vive
num nível de pobreza tal que o impede de gerir livremente as suas
vidas, em que os portugueses são forçados à desesperança e ao
desenraizamento como forma de construção do futuro? Claro que é.
Da aprovação da lei da
coadoção depende a felicidade de muitas vidas – e nem que fosse de uma
só! O que me pergunto é porque decidiu o PSD apostar numa cruzada
referendária contra a coadoção de filhos de casamentos de pessoas do
mesmo sexo ao mesmo tempo que foge da discussão dos efeitos sociais
(que, aliás, nega) da política austeritária que produziu um milhão de
desempregados.
Faz lembrar as eleições americanas de 2004, nas quais Bush filho e a Direita Cristã decidiram discutir da pior forma o casamento gay para
evitar discutir a crise económica e, sobretudo, o desastre do Iraque e
as mentiras de Bush para justificar a guerra. Havia que mudar o fulcro
da discussão e, dessa forma, puxar a maioria dos eleitores para um
resvaladiço terreno moral onde os debates sobre os direitos dos cidadãos
se fazem no campo de uma pseudorreligiosidade patriarcal e homofóbica
verdadeiramente indignante.
A minha explicação para o que está a suceder em Portugal é semelhante. Aprovado o casamento gay,
é importante discutir a ampliação do reconhecimento de iguais direitos
de formalização legal do amor a todos os cidadãos, o que significa
reconhecer aos casais homossexuais exatamente o mesmo direito de que
dispõem os casais heterossexuais de solicitar a um tribunal a coadoção
dos filhos dos seus cônjuges. O que querem aqueles que aprovaram (o PSD)
e apoiam (a hierarquia da Igreja via secretário da Conferência
Episcopal Portuguesa, CEP) o referendo é animar à guerra contra a muito
lenta emancipação das mulheres e de minorias sexuais que permitiu no
Ocidente capitalista, desde os anos 1970, o reconhecimento do direito à
interrupção voluntária da gravidez e ao casamento e à adoção por pessoas
do mesmo sexo. Depois de anos de (ainda hoje superficial) suavização da
discriminação dos homossexuais, quer-se reconstituir o que se julga ser
uma maioria social homofóbica. Parar a mudança. Voltar atrás.
Não
discutirei aqui a má-fé da proposta de referendo, ou a forma como ela
divide a própria direita política portuguesa. Limito-me a sublinhar que a
Igreja Católica foi a única que discutiu a legitimidade do Parlamento
para aprovar a coadoção. Gostaria de duvidar de que a CEP se sinta
representada por semelhante personagem como o presidente da JSD, mas é o
que parece. Em novembro passado, a CEP definiu bem o que entende estar
aqui em causa: “As alterações legislativas introduzidas no nosso sistema
jurídico” (que os bispos acham produto de um disparate que inventaram e
a que chamam “ideologia do género”) “não são irreversíveis. E os
cidadãos e legisladores que partilhem uma visão mais consentânea com o
ser e a dignidade da pessoa e da família são chamados a fazer o que está
ao seu alcance para as revogar” (PÚBLICO, 14.11.2013). É curioso: entre
os dois grandes partidos da direita portuguesa, aquele que cedeu a este
descarado exercício de lóbi clerical foi o que nunca se reivindicou do
catolicismo político, dirigido por homens com uma vida pessoal tão pouco
consentânea com a ortodoxia do Vaticano quanto Sá Carneiro ou Passos
Coelho. Pensa o PSD, depois de bloquear a coadoção, apontar canhões
contra a liberdade de abortar e o casamento gay?
É tudo
menos coincidência que os bispos portugueses digam que o que está em
causa é a “desconstrução da matriz heterossexual da sociedade” logo que o
Papa abriu uma estreitíssima janela de reconhecimento da dignidade dos
homossexuais, e daqueles que são crentes em especial, ao perguntar aos
crentes católicos que atitude “pastoral” a tomar perante “as pessoas que
escolheram viver em casais do mesmo sexo” e, dentro destes, aquelas que
“adotaram crianças”. Quando o ex-reitor da Universidade Católica Braga
da Cruz diz que “estamos perante uma questão que altera a ordem
civilizacional em que temos vivido ao longo de milénios”, o que ele está
a fazer é, além de condicionar a resposta dos católicos, calar o
próprio Papa! Pior ainda é que se roce a linguagem dos anos 1930 e se
fale de “algumas vanguardas” que pretendem “impor modelos à sociedade
portuguesa (…), numa perspetiva muito egoísta” (Braga da Cruz, RR,
19.1.2014), como Salazar que, em 1936, depois de impor o dogmático “não
discutimos a Família!”, denunciava os que queriam “erguer em teoria, em
ciência e em programa de Estado o que havia de supor-se passageiro
desvairamento”.
A ONU denuncia por todo o mundo (Europa incluída) o
aumento dos crimes de ódio contra os homossexuais e os transexuais; 80
países continuam a criminalizar a homossexualidade, três deles com a
pena de morte; dentro da UE, a Hungria e países bálticos retomam
legislação discriminatória; a comissária da ONU para os direitos
humanos, Navi Pillay, recorda que "a homofobia e a transfobia não são
diferentes do sexismo, da misoginia, do racismo ou da xenofobia". E a
Igreja e os seus porta-vozes veem invasão de vanguardas homossexuais num país onde nem sequer se tem o direito a coadotar os filhos de quem se ama e com quem se vive. Que hipocrisia!
Historiador
IN "PÚBLICO"
23/01/14
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