Palavra puxa Palavra:
O Livro Negro da
Condição das Mulheres
Cada língua reflete o povo que a foi moldando ao longo dos
tempos e que a utiliza para expressar o seu quotidiano. Cada língua
espelha a sociedade que lhe deu origem e que a mantém.
As línguas faladas à volta do globo contêm palavras e expressões que,
infelizmente, espelham a condição feminina, enquanto realidade baseada
na desigualdade, discriminação e desprezo. Basta estarmos atentos/as e
informados/as.
Informar é o desiderato de O Livro Negro da Condição das Mulheres,
uma compilação de textos de todo o mundo, da jornalista francesa,
Christine Ockrent, publicada em 2007 pela Temas e Debates. Vale a pena
ler.
Segundo Claire Brisset, no artigo Desde a infância…, na Índia, país
onde a condição subalterna da mulher resulta no aborto de fetos
femininos, no infanticídio de meninas e no abuso e violação de jovens e
mulheres, existe um nome feminino que resume tudo: nakusha, “não
desejada” por ser considerada inferior e desprezível.
Da Ásia para as Américas, Marc Fernandez e Jean-Christophe Rampal
descrevem a origem de feminicídio, palavra criada para comunicar a
condição feminina em Ciudad Juárez, na fronteira do México com os
Estados Unidos, onde mulheres, dos 13 e 22 anos de idade, são
sistematicamente raptadas, violadas e mortas, os corpos abandonados em
terrenos baldios, próximos das avenidas ou vias-férreas. Nesta cidade
pobre, terreno fértil para a droga e a corrupção as mulheres são mortas
simplesmente porque são mulheres.
Na Europa, no nosso Portugal, onde em 2013, já foram assassinadas,
pelos companheiros, mais de 35 mulheres, temos aquele insulto que, de
tão popular, se tornou banal, quando em estado de fúria chamamos a
alguém “filho da puta” – e notemos que o dito cujo é “filho” no
masculino. Ou seja, em vez de conjurar o sujeito da ofensa ou desfeita,
no masculino, vamos à mãe, chamando-a “puta” no feminino! Porque “puto”
no masculino já é outra coisa, bem mais pacífica e até ternurenta. Como
as palavras desvendam os nossos preconceitos e valores!
Porque esta tendência de desprezar e/ou difamar a mulher é mesmo
global, o inglês – e tantas outras línguas – vão pelo mesmo caminho,
pois a injúria “son of a bitch” é idêntica à expressão portuguesa, que é
infeliz e injusta em qualquer outra língua por esse mundo fora.
Voltando ao Livro Negro, podemos pegar neste assunto numa ótica
etimológica, indo às raízes e à história das palavras. É o que faz Odon
Vallet, no artigo A Mulher e as Religiões, onde traça as origens de
palavras tão diferentes como venerável, venéreo, veneno e Vénus, todas
vindas de wen, o termo indo-europeu que significa desejo.
Na sua origem, venerável nomeia algo que inspira um desejo de
veneração, graças à sua idade. O veneno começou por ser um elixir de
desejo e amor afrodisíaco. O adjetivo venéreo resulta do desejo sexual,
enquanto Vénus é a deusa romana do desejo, como a grega Afrodite, a
fenícia Astarté ou Ishtar da Babilónia.
Não havendo uma grande deusa primordial comum a todas as
civilizações, é reconhecida a primazia cronológica do feminino nas
estatuetas e personagens veneradas. Essa primazia exprime-se se em
figurinos encontrados nos cinco continentes. As mais antigas remontam a
30 000 aC.
Mulheres desejáveis ou mães veneradas, certo é que a sua feminidade
se impõe na estatuária pré-histórica. Por sua vez, a vingança dos deuses
masculinos coincide com a idade dos metais e das primeiras
cidades-estados, onde o ouro aumenta a riqueza dos homens e o bronze se
alia à sua força manual. E a vingança continua…
IN "AÇORIANO ORIENTAL"
26/11/13
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