Uma cientista
em estado líquido
O cientista em estado líquido não tem um lugar permanente, é um precário
contratualizado. Em teoria, tem boas condições de trabalho, na prática
nada funciona. Como um líquido, molda-se às novas situações, até um
certo limite.
Mudei de trabalho, mudei de vida, mudei de país. Sim, também eu mudei de país! A burocracia venceu, desisti por exaustão.
A mobilidade é importante
na ciência. Até fundamental, diria. Mas para enriquecer a academia, a
mobilidade implica um fluxo contínuo com partidas de chegadas de
cientistas. Senhores governantes, conseguiram promover a mobilidade, em
fluxo contínuo, mas num só sentido. Para fora!
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Estamos em crise,
são tempos difíceis. De acordo. Mas o exemplo tem que vir de cima e não
vem. Na ciência, como em muitas outras áreas, somos regulamentados por
insanos despachos feitos por gente que nunca devia ter tamanha
responsabilidade nas mãos. Instituições congelam, projectos ficam
parados e cientistas desesperam, graças a esses mesmos despachos
emitidos de um qualquer gabinete ministerial. Executar um projecto, no
sentido contabilístico, é um pesadelo real para um cientista. Será mais
fácil descobrir a origem da vida do que conseguir transferência de
verbas a tempo para a investigação.
Daí a exaustão. Muitas
considerações se fazem sobre a passividade dos portugueses perante as
barbaridades governativas dos últimos tempos. Na minha perspectiva
enviesada (afinal o ecossistema da ciência não é de todo representativo
da sociedade), há um total descrédito pelas capacidades intelectuais e
pela seriedade da classe governante. É fraquinha.
E agora, pode um
cientista mudar o sistema? Os cientistas portugueses podem assumir três
“estados” primários materiais: o sólido, o líquido e o gasoso.
O
cientista sólido estabeleceu-se, tem um lugar permanente como
investigador ou professor universitário (que, na realidade, combina
investigação com ensino), não muda de forma, até ver.
O cientista
do estado líquido não tem um lugar permanente, é um precário
contratualizado. Em teoria, tem boas condições de trabalho, na prática
nada funciona. No que toca a responsabilidades, é cristalino de tão
sólido, no que toca a direitos… bom, depende dos dias. Como um líquido,
molda-se às novas situações, até um certo limite.
O somatório de
frustrações burocráticas e institucionais provoca ebulição e o cientista
líquido passa ao estado gasoso. Neste estado, é um precário bolseiro de
investigação. É um profissional da ciência, encartado com os mais
variados graus, e cuja bolsa actual não lhe confere grau académico. O
seu estado gasoso possibilita a libertação imediata em momentos de
crise. Não há transferência de verbas? O burocrata resolve: abre a
válvula de escape e soltam-se uns bolseiros no éter, que nem deixam
marcas de tão voláteis que são.
Nenhum destes três estados
fundamentais têm energia para combater o sistema, se do outro lado o seu
interlocutor é fraquinho. Simplesmente, não vai perceber. Cientistas
sólidos, quase todos com mais de 50 anos, têm outros, também sérios,
problemas. As universidades vão muito mal. Cientistas líquidos e gasosos
escapam-se assim que podem. Coisa curiosa, essa, do cientista que come e
precisa de tecto, como todos os outros.
Investigadora no Centro para a Geobiologia da Universidade de Bergen, Noruega
16/10/13
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