O Kelbim, p'ra Serralves
Reparem bem: foi ao estilo fadista-vadio que Varela recuperou o
esférico no meio-campo por alturas da circunvalação direita do grande
círculo, avançando então para a rotunda da boa vista, e aí, ainda sem
metro nem TGV que lhe valessem, Varela, a butes e sem mais pinga de
força, passa a bola para o lado meio-esquerdo do Benfica onde havia um
desfiladeiro pouco habitado de vermelhos.
Varela, o molengão
criativo gringo gingão, entrega a seguir a joia do bolhão aos dois
índios camuflados de azul do lado de lá. Em porte de guerra, eles: o
Crista-Alta, também conhecido por 'O Kelbim' e adiante o agora
rebatizado de Lied-são.
Por sua vez, e citando o mestre das
redundâncias criativas, Gabriel Alves, algo vai acontecer que
desequilibra a lógica da tática e a tática da lógica: O Kelbim,
personagem com a alma dos felizes, dos que não pensam muito, avança.
Tanto podia mandar a rechonchuda para o calabouço do presépio como para a
cabeça do Macaco.
Para quem não viu mil vezes está tudo escrito
no vídeo da Sport TV (que notável transmissão!). O Kelbim, fora do tempo
de Greenwich, à chegada do primeiro defesa solta a garça na marginal,
rumo ao usado Liedson, o tal que a gente nunca percebeu porque cá veio
parar - meia época como se fosse meia de leite, mas descafeinada. Quando
ele entrou qualquer morcão perguntava: o Liedsom? Fosga-se, com tanto
homem direito no Semide e parecemos a ortopedia do Santa Maria... - que
ficassem em Lisboa!!! Só faltaba mesmo entrar o Ismailob!!!
Mas
mestre q'é mestre é assim. O Vítor subiu uns furos na consideração do
Tribunal. Fez lembrar o Oliveirinha - qual plano tático, qual
metodologia... Metia os mecos certos a 15 minutos do fim e o Porto
desempatava o que estava encravado nos 75 minutos anteriores. Com quem é
que aprendeu? Com o velho Pedroto: se não chove, entra o Seninho. E
tau, e pimba. O Vitor estava nessa: milagre tipo Cafarnaum, mas sem
Jesus: até mancos, idosos e malucos ficam bons quando vestem a camisola
do dragão!
O Kelbim... p'ró Liedson... que vê que a bola a vir...
e deve ter aprendido aquilo no Sporting - parecia uma bailarina do
Bolshoi em bicos de pés rumo à linha da esquerda, anda-me acaçar ó
Luisão, e depois, quando lhe chega a ogiva nuclear, 90m54s, adorna 74
graus à esquerda e passa o peso do mundo de novo ao Crista Alta, Apache
do Mundo. O Kelbim.
Não estava escrito em nenhum compêndio de
futebol, nem mesmo no do Madjer: quem-como-porquê pode em dois segundos
dar uma aula de física, fazendo a bola descrever ao primeiro toque a
arcada elipsoidal da mãe-Terra, o dia nasce e termina naquele avanço?
O
Kelbim apalpou na redondinha com o pé direito rumo a Sul aos 90m56s. E
fez surgir o Apocalipse e os Anjos aos 90m57. Peito de pé esquerdo,
gravidade zero, e foi. Ele também foi com a bola para dentro da baliza
em alma e voltou. Vapt-Vupt. Roderick, o defesa face-do-medo do ai
Jesus, galopava ao lado do menino índio e só acordou quando um relâmpago
relinchou das botas d'O Kelbim. Artur não podia prever a façanha:
inovação é isto. Quando Artur voou, may-day, may-day: guarda-redes em
desastre aéreo (todas as terças, no National Geographic).
É,
enfim, a Arte. Não há em Serralves nenhuma obra moderna cujo efeito da
diálise homem-peso-espaço tenha a aerodinâmica de O Kelbim entre o
momento em que a bola chega e a bola parte, chutada com a afinação de Lá
Maior, o som do mundo, o momento zero da voz humana e do Cosmos, o
Ooooommm dos mestres yoguis. "Gooollloooommmm", o som deste universo. A
pá vermelha de Serralves merece a parelha da pluma de O Kelbim. Ele voa,
ela afunda.
Domingo se verá se conseguimos meter o estratosférico
no psiché do Paços e voltar com ele para a Avenida e para a Baixa, a
tal que precisa de ser reabilitada. A tal onde o povo não tinha varanda e
honra para os títulos. Agora, o presidente da Câmara queria índios para
sair contra o Terreiro do Passos porque ai ai ai, vão deixar falir a
Sociedade de Reabilitação Urbana... É tarde: o Porto pertence aos que
fazem acontecer as coisas pela persistência, pela Arte e não pelo medo.
Os pequenos e grandes Kelvins. É como se renascêssemos.
IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
16/05/13
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