A fome e a vontade de comer
Segundo o
próprio, Mário Soares não viu tanta fome em Portugal "nem no tempo de
Salazar". O que explica isto? Na versão clínica, talvez a hipótese de a
memória do dr. Soares sofrer de alguns percalços. Na versão
conspirativa, talvez a hipótese de o dr. Soares afinal não passar de um
revisionista de Maio disfarçado de campeão de Abril. Na versão
plausível, talvez a hipótese de o dr. Soares proferir os disparates que
julga necessários aos seus objectivos.
Hoje, é ele mesmo quem
confessa: "Toda a gente diz na televisão que não há dinheiro para
comprar pão, para comprar nada, tem de ir pedir, ir aos caixotes de
lixo. Alguma vez se viu isto em Portugal? Eu tenho 88 anos e nunca vi.
Sinceramente nunca vi, nem [todos juntos, agora] no tempo de Salazar."
Em suma, a perspectiva histórica de um dos maiores vultos do Portugal
contemporâneo fundamenta-se exclusivamente no que lhe chega através dos
"telejornais", inexistentes ou inconsequentes durante o Estado Novo e
incansáveis em denúncias, com ou sem aspas, desde que, para irritação de
muitos amigos do dr. Soares, Cavaco Silva abriu as ondas hertzianas à
iniciativa privada.
O dr. Soares responde por ele, mas num país
menos exótico atoardas assim não se limitariam a demonstrar ignorância
ou má-fé: prejudicariam a causa que actualmente o motiva, leia-se o
derrube do Governo. O Governo é uma desgraça? Com certeza. Sucede que,
em primeiro lugar, não é uma desgraça pelas razões avançadas pelo dr.
Soares, já que uma política que esfola os contribuintes para preservar o
Estado lembra bastante mais o socialismo do que o mítico
"neoliberalismo", esse consolo dos simples. Em segundo lugar, o Governo
não é uma desgraça comparável à regência de Salazar pela prosaica razão
de que, ao contrário deste, o dr. Passos Coelho foi livremente eleito
por uma razoável quantidade de cidadãos, eventualmente superior às 70 ou
80 alminhas subscritoras da carta do dr. Soares a pedir a demissão do
primeiro-ministro. Em terceiro e último lugar, as hipérboles tendem a
ridicularizar os seus autores, e só um território de pasmados justifica a
tolerância de que o dr. Soares dispõe.
Sem dúvida que a
iliteracia do tempo facilita o exercício. Bush invade o Afeganistão e o
Iraque? Bush é igual a Hitler. Israel defende-se de ataques terroristas?
Os líderes israelitas são iguais a Hitler. Merkel recusa financiar-nos
incondicionalmente? Merkel é igual a Hitler. Os novos mapas do iPhone
não primam pelo rigor? A Apple é pior do que a Gestapo. Até ver, o dr.
Passos Coelho fica-se pela equivalência (desfavorável) a Salazar. Se, um
dia, executar uma reforma digna do nome, é garantido que a rigorosa
escala do dr. Soares o colocará a par do Führer, o padrão de medida em
vigor. Não seria mais idiota se comparássemos o dr. Soares por exemplo a
Estaline, com a atenuante de que o dr. Passos Coelho nunca integrou a
Mocidade Portuguesa nem alimenta simpatias evidentes pelo Terceiro
Reich, enquanto o "pai da democracia" serviu indirectamente o "pai dos
povos" ao longo de sete anos. Contra Salazar, que pelos vistos não
merecia a desfeita.
Quarta-feira, 12 de Dezembro
Dificuldades de aprendizagem
É
aborrecido que um forasteiro procure evangelizar os nativos, mas o
chefe da missão local do FMI resumiu tudo numa frase: Portugal pode ter
um grande Estado providência desde que consiga financiá-lo. Um truísmo?
Teoricamente, sim. Na prática, não. Conforme todos os dias se constata,
inúmeros portugueses acham vigorosa e, ao que parece, sinceramente que
os direitos do assistencialismo não implicam o dever de o pagar - de
alguma maneira, alguém, seja a divindade seja a "Europa", o fará por
nós. Por manifesto azar, nem o Céu nem a Alemanha estão voltados para a
generosidade, donde o actual fosso a separar as expectativas da
realidade e a geral confusão que por aí vai.
Por um lado, os
cidadãos ignoram ou fingem ignorar que aquilo que o Estado lhes "dá" é
uma fracção daquilo que o Estado lhes retira. Por outro lado, os
políticos convenceram-se ou fingiram convencer-se de que o Estado só
poderá aumentar as "dádivas" se aumentar os gastos. Qualquer pessoa com
um vestígio de lucidez perceberia o carácter alucinado destes
pressupostos. Infelizmente, a lucidez ganhou aqui escassos adeptos, pelo
que o sr. Abebe Selassie arrisca-se a assemelhar-se ao professor que
explica física quântica a alunos modestos em aritmética básica. No caso
presente, os "alunos" não dominam literalmente a aritmética e, perante a
impossibilidade de dois mais dois serem cinco, insistem em corrigir as
parcelas e não a soma.
Exagero? Quem dera. Ainda esta semana, a
ex-secretária de Estado dos Transportes Ana Paula Vitorino declarou que a
suspensão do TGV representou "um profundo retrocesso" para a economia.
Dado que a dra. Ana Paula não é famosa pelos dotes de comediante,
presume-se que falasse a sério. E a sério falam resmas de socialistas,
comunistas e até governantes em funções quando lamentam a recente
dificuldade em torrar o dinheiro que não possuímos. O pobre sr. Selassie
anda a tentar ensinar-nos em meses aquilo que séculos de História não
consegui- ram. Como os estrangeiros, aliás, já deviam ter aprendido,
Portugal não aprende.
Quinta-feira, 13 de Dezembro
Erros da juventude
Há
quase trinta anos, valha-me Deus, a banda pop The Smiths constituía uma
parte importante da minha vida. Suponho que no início da adolescência
haja muitas vidas assim heróicas e ridículas, dedicadas ao culto de
certas canções e das criaturas que as fazem. No meu caso, as canções dos
Smiths e do seu principal criador, Steven Morrissey. Não satisfeito por
dissecar cada verso cantado, a obsessão levava-me a sorver as opiniões
faladas pelo sujeito nas inúmeras entrevistas que concedia. Os versos
eram, achava-o então e mantenho hoje, tocantes; as opiniões, uma
calamidade panfletária, que na altura eu tomava por verdades universais.
Infelizmente, a única verdade nesta história é a seguinte: além de uma
personagem curiosa, Morrissey é um cretino, tolhido no berço por
complexos de "classe" (o homem nasceu nos meios operários de Manchester)
e tolhido na idade adulta por um ego devida ou indevidamente insuflado
(o homem continua a dispor de adoração quase religiosa).
Vem isto
a despropósito do episódio do telefonema da "Rainha" para um hospital
londrino e da enfermeira inglesa de ascendência indiana e nome português
que se suicidou após engolir a brincadeira de dois radialistas
australianos. Morrissey, sempre mortinho por expelir ódio na direcção da
família real, responsabilizou-a pelo sucedido, sobretudo a destinatária
do telefonema, nora do príncipe herdeiro, que nas palavras do cantor
"não disse nada sobre a morte desta pobre mulher". Por acaso, disse: em
comunicado emitido logo após a tragédia, a senhora e o marido
declararam-se "profundamente tristes" perante a notícia. Mas o respeito
pelos factos nunca foi o forte de quem uma vez acusou Churchill de
enviar jovens para a guerra sem motivo.
Morrissey tem razão quando
refere o absurdo interesse dos media pelos assuntos (ou a falta deles)
relativos à realeza. Perde a razão quando se esquece de alargar a
crítica ao interesse dos media pelos palpites de vedetas do espectáculo,
incluindo os seus. Mesmo algo excêntricos se comparados com a bitola do
sector e fascinantes se comparados com o grau zero do discernimento
(não é fácil descer ao nível de Sean Penn), os alívios verbais de
Morrissey não o distanciam dos colegas do show-biz e da pelintra
racionalidade contemporânea, que detecta a intervenção de entidades
superiores em todas as desditas na Terra. Sobretudo os alívios não
afectam a monarquia: afectam-me a mim. Ou o moço crédulo que fui.
Histórias da emigração
O
que faz andar o Álvaro ou, na versão respeitosa e portuguesa, o dr.
Santos Pereira? Desde o início que o seu papel no Governo parece ser o
de oferecer uma referência de sensatez face aos disparates dos colegas -
e de ser desautorizado pelos mesmos logo a seguir. Há dias, foi a
responsável pela Agricultura, o Ambiente e as Galinhas a enxovalhar a
(razoável) opinião do ministro da Economia sobre os "fundamentalismos"
ecológicos na legislação europeia. Noutros dias foram outros ministros
ou luminárias a praticar o tiro ao Álvaro, modalidade aliás também em
voga nos media, que nos momentos de exaltação procuram transformar o
homem numa anedota e nos momentos de doçura concluem que ele "não é
político". Não sei. Sei que para trocar o Canadá por isto o homem talvez
seja é maluco. No mínimo, o único português que em vez de partir
regressa é um excêntrico.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
16/12/12
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