Ineficácias
Perdeu-se o norte e quase tudo, até o feriado do 5 de Outubro
Não gosto de novelas. Nem de ficção nem da vida real.
Irrita-me o drama arrastado, o labirinto sem saída, a lágrima sempre
prestes a cair, a intriga previsível, a solução adiada.
Prefiro a ação, o
problema resolvido na hora, o touro agarrado pelos cornos. Talvez por
isso há dias fiquei surpreendida comigo mesma ao dar por mim agarrada ao
pequeno ecrã, completamente entregue à trama da célebre novela
inspirada no romance de Jorge Amado, Gabriela. E isso não pela beleza
estonteante da protagonista nem pela história dos seus amores com o
patrão, mas sim por uma greve de quengas. Sim, isso mesmo, uma greve de
quengas ou, se preferirmos num português europeu menos prosaico, de
prostitutas.
A ideia não lembra ao diabo mas está ao nível da
genialidade do autor do enredo que, a propósito de uma procissão para
fazer chuva em tempo de seca, põe a seco os imponentes coronéis do sítio
para que estes aceitem que a Virgem saía à rua com um manto bordado por
mulheres da vida e que estas, as ditas quengas, saiam à rua também,
acompanhando a Santa e as castas esposas daqueles.
Tudo junto em
romaria, o bem e o mal, a virtude e o pecado, tudo em procissão para que
o céu se compadeça, abra as comportas e regue o cacau, o ouro doce em
que assenta o poder dos senhores da terra. Quem viu, sabe como foi. As
quengas queriam ir, as senhoras dos coronéis não queriam que as quengas
fossem. Os coronéis, esses só queriam chuva, pelo que optaram por ficar
fora do barulho.
O galinheiro que se entendesse até porque em guerra de
mulheres, ainda mais se entre virtuosas e pecadoras for, não há homem
que meta a colher. Nenhuma das beligerantes vergou. Nem a Zarolha, a
quenga que em má hora se lembrara de bordar o véu e a quem até já fora
prometida uma valente surra pela ousadia. O impasse instalou-se e,
enquanto não se resolvesse, não havia procissão nem chuva para ninguém. O
coronel dos coronéis compreendeu-o e, como estratega nato que era,
percebeu como resolver o imbróglio. Nada mais, nada menos que com uma
greve ao sexo. A ideia, com efeito, foi dele e contra os dele, mas até
hoje ninguém o soube, já que a política é mesmo assim, um mar de subtis
traições onde, pela calada, se urdem acordos e a culpa morre sempre
solteira.
Convocada, pois, a greve, foi só pô-la em prática. Para total e
absoluto desespero dos coronéis, verdadeiros garanhões no cio
subitamente privados de dar prova da sua macheza ou, no português de
Portugal, da sua virilidade. Isto, claro está, porque não se esqueça
que, no português do Brasil, as safadezas de cama estão sempre
interditas aos santuários das esposas, ventres talhados apenas para
conceber futuras gerações de coronéis. E ponto final.
Resta dizer que a abstinência do corpo pôde mais do que o desejo de
chuva, razão pela qual não houve coronel que, solicitado a pronunciar-se
sobre a participação das quengas na procissão, não votasse a favor
destas e contra a mãe dos seus filhos. E, assim, quem antes lavara as
mãos como Pilatos agora metia as mesmas mãos à obra e resolvia a
procissão que não tardou a sair com quengas de um lado e senhoras bem
casadas do outro e ainda, segundo o que parece, com o assentimento
divino que fez cair dos céus a tão cobiçada água, resolvendo a
Providência o que fora chamada a resolver. O problema extinguira-se.
Eficazmente e para gáudio dos envolvidos.
Confesso que é disto que eu gosto, de eficácia. Mesmo que seja a
eficácia de uma greve de quengas. Não gosto do faz de conta e, muito
menos, de ilusões. Não gosto de dourar a pílula nem de soluções de 360
graus que deixam tudo exatamente como estava ou pior. Por isso, porque
gosto de eficácia e de problemas resolvidos com inteligência, ando fula
com a ineficácia deste país que por acaso só tem coronéis para o que não
interessa. Nada de novo, é certo, mas nem por isso menos revoltante.
Na verdade, estou cansada do crescente desgoverno do governo, da
alienação de alguns governantes que ainda acreditam em cabalas contra si
e os seus, da guerrilha oca e oportunista da oposição e até de
manifestações populares que de nada adiantam porque não há nada para
adiantar.
Saiam à rua dez, cem ou milhares o resultado é nulo.
Simplesmente porque toda a resolução é ineficaz neste Portugal feito à
medida da troika. Perdeu-se o norte e quase tudo, até o feriado do 5 de
outubro. Restam-nos hoje, como dizia o poeta, a saudade e o mar
universal. E, porque não?, acrescento eu, Gabriela, o espaço da ficção
onde ainda há homens que tomam decisões eficazes. E resolvem problemas.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS DA MADEIRA"
05/10/12
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