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Os números assustam e merecem reflexão: por volta do final de 2004, o Estado injectou no SNS ao redor de 500 milhões de euros para regularizar dívidas aos seus fornecedores; quatro anos depois, em 2009, o Estado, através de um esquema muito discutível de mobilização de verbas, regularizou perto de 800 milhões de euros de dívidas; segundo as últimas notícias, ainda o mesmo Estado está a preparar-se para injectar no SNS, dois anos depois, 1,6 mil milhões de euros com o mesmo objectivo - regularização das dívidas a fornecedores. | ||
Como é óbvio, este crescimento exponencial e impossível de ser mantido põe dois problemas cruciais: o primeiro é a sua razão de ser - não sendo conhecidas razões conjunturais de saúde pública ou tragédias sistémicas, porque crescem desta maneira as despesas? Em segundo lugar, a questão é posta por cínicos e com intuitos eminentemente demagógicos: se toda a despesa do Estado, depois de inscrita no OGE, tem de estar devidamente cabimentada, como é possível sequer haver endividamento transitado e acumulável de ano para ano? A resposta a estas duas questões é naturalmente diferente mas tem, no fundo, a mesma origem: a total incapacidade do Estado, a todos os níveis, para gerir competentemente seja o que for, em particular quando, exigindo-se capacidades de liderança, risco e decisão, elas são substituídas por uma inultrapassável cultura burocrática que sobre tudo domina e se impõe. A principal razão para o crescimento exponencial da despesa é a até agora total falta de coragem política e gestionária para abordar de vez e frontalmente a questão da oferta dos serviços e produtos de cuidados de saúde - ao fim e ao cabo, cumprir com uma das regras mais básicas da gestão: a mais eficiente distribuição e repartição dos recursos escassos disponíveis. Toda a gente o sabe e quase ninguém o quer defender em público: temos serviços públicos caríssimos, só existentes e sustentados para ilusoriamente e por exemplo fazer formação interna (e praticamente nenhuma ou residual investigação), que poderiam perfeitamente ser substituídos com benefício para toda a gente (e obviamente em primeiro lugar para o doente) pelo outsourcing exterior a preços francamente competitivos; pelos serviços de cuidados de saúde que já são propostos e fornecidos à população em percentagens superiores a 65%, o que indicia uma economia de escala em termos de preços a contratar que o serviço público só está neste momento a bloquear, por marginal. Mas, pior do que tudo isto, temos escandalosas duplicações de oferta, separadas por centenas de metros ou meia dúzia de quilómetros entre elas, em que cada uma não ultrapassa os cinquenta ou sessenta por cento da respectiva capacidade instalada. Pior ainda, enfrentamos este problema até ao nível das próprias organizações de saúde - desde hospitais que nunca deveriam ter sido construídos e que são autênticos elefantes brancos de ineficácia e incapacidade estruturante de uma exploração equilibrada até à notória sobreoferta, avaliável a olho nú e sem qualquer comissão técnica, em termos de especialidades a cobrir uma área populacional que se sabe, por exemplo e à partida, poder ser perfeitamente coberta por metade do investimento assumido ou previsto. Não se tenha a mais pequena dúvida - no SNS existe o que, por princípio e conceito fundamentais, não deveria existir: a concorrência efectivamente desregulada nos aspectos mais cruciais dos investimentos efectuados. Ou melhor e para que tudo fique mais claro, as opções de investimento e escolha no SNS deveriam aproximar-se o mais possível do que se qualificaria como o resultado objectivo de um processo de contratualização interna e avaliação de desempenho em excelência. De facto, não há outra alternativa duplamente clínica e técnica para podermos escolher o destino do escasso dinheiro disponível ou a oferta de serviço e produto que melhor respondam às necessidades do doente: operacionalizar a excelência no respectivo desempenho. Enquanto fugirmos a estas questões basilares, pela incapacidade total de ouvir efectivamente os profissionais, impor critérios de total discricionariedade no corte dos custos operacionais ou criar desigualdades de autêntico arbítrio, confundindo e não diferenciando excelência de desempenho com a mediocridade, dificilmente, e como é óbvio, atingiremos o umbral da gestão eficiente do SNS. A regularização racional da oferta dos cuidados de saúde, como objectivo prioritário absoluto da possível e desejável regeneração do SNS, passa assim pelo que se esconde ou se menoriza: a coragem para eliminar o pressuposto político - num sentido lato - da avaliação do investimento e da prestação do serviço. E no pressuposto político incluo desde a influência partidária local ou regional nas opções de investimento à política interna dentro das organizações de saúde, onde o privilegiar das opções nem sempre se faz de forma tecnicamente irrepreensível. Quem precisa ou julga vir a precisar a curto prazo de cuidados de saúde não pode deixar de ter um carinho e uma atenção muito especial para o SNS - ele é talvez, e por efeito dos seus profissionais, a maior e mais consistente conquista de um povo tradicionalmente parco em benefícios e atenções. Daqui, também e portanto, uma outra conclusão: é com os seus profissionais e para eles que se fará (ou não) qualquer processo de reconversão e sustentabilidade. O estado de espírito actual das diversas classes profissionais da saúde - de desânimo, de alheamento e de alguma revolta - é verdadeiramente preocupante. Há que criar uma verdadeira cultura de mobilização, co-participação e co-responsabilização transversal que ponha as organizações a funcionar definitivamente num processo "bottom-up" de gestão que envolva portanto todas as lideranças intermédias. Mas, para isso, também se pediria aos dirigentes corporativos dos profissionais da saúde que passem urgentemente de uma posição que, na aparência e da parte do homem comum, parece ser sistematicamente reactiva e de bloqueio, para a eleição pública e sistematizada dos grandes objectivos que sustentarão as negociações a promover para se chegar ao tal resultado que ninguém tem dúvidas que é comum e generalizado. Ficou por enunciar a tal segunda razão para aquele crescimento exponencial da despesa na saúde, e essa vai direitinha para a hipocrisia do Estado. O Estado, que negoceia leoninamente contratos-programa e depois é o primeiro a não os cumprir; o Estado, que faz planos pluri-anuais de atividade projectada para a saúde e, depois, é o primeiro a dar conta pública do respectivo falhanço; o Estado, que, autenticamente à última da hora, estabelece sem critérios públicos justificados aumentos anuais para a despesa - sabendo, de antemão, que, a cumprir-se rigorosamente o que se estabeleceu, a compra dos medicamentos ou a adjudicação de obras e equipamentos urgentes ficarão inexoravelmente sem cabimento a partir do fim do primeiro trimestre ou ainda no decorrer do primeiro semestre. Pretender responsabilizar gestores nestas condições é, portanto e acima de tudo, um inaceitável acto de hipocrisia. Não há desperdícios na saúde? Está tudo devidamente controlado e sem mácula? Não será também preciso um processo interno assumido corajosamente de reeducação gestionária a todos os níveis do SNS? Com certeza! Só que isso não pode nem deve fazer esquecer ou escamotear as grandes razões que, hipocritamente, são preteridas nos congressos, seminários e mesas-redondas, onde os candidatos a "salvadores da pátria" pululam atrás dos microfones e câmaras da comunicação social. |
IN "VIDA ECONÓMICA"
02/12/12
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