30/10/2011


ESTA SEMANA NA
"SÁBADO"


Doidos para chamar o INEM

Hora de ponta na Avenida Fontes Pereira de Melo, no centro de Lisboa. Um homem gordo cai subitamente em frente a uma paragem de autocarros, bloqueando a estrada. Fica estendido, de olhos fechados, e imóvel. Várias pessoas o rodeiam, uma mulher telefona prontamente para o 112 e a polícia corta o trânsito no sentido Saldanha-Marquês de Pombal. Gera-se o caos. Toda a gente acredita que o homem teve um ataque fulminante e que está a morrer. Pouco depois, chega a ambulância, de onde saltam dois técnicos do INEM preparados para socorrer uma paragem cardiorrespiratória. Já se preparam para iniciar as manobras de reanimação quando olham para a cara da vítima. Num ápice, o semblante de preocupação dá lugar a um sorriso:

“Ó António, somos nós, acabou, levanta-te lá daí”, diz um dos técnicos.

O homem abre os olhos, balbucia um “outra vez, não” e levanta-se, abandonando o local em passo descontraído, perante a ira e a estupefacção da polícia e dos populares. Era só mais uma falsa emergência desencadeada por António dos Autocarros, o cliente mais assíduo do INEM.

“Só eu, já o apanhei dezenas de vezes”, diz Jorge Ramos, 41 anos, técnico de ambulância de emergência do INEM.

“Da primeira vez, o António estava a fazer-se de inconsciente dentro de um autocarro em frente ao Centro Comercial Amoreiras. O autocarro parou, toda a gente saiu e, quando entrei, vi um homem com uns cento e tal quilos deitado no banco de trás, bem vestido e apresentável, com o cabelo todo espetadinho para o lado. O meu colega já o conhecia e mandou-o acordar. Trazia um cartão de doente psiquiátrico do Hospital de São Francisco Xavier e uma foto em que aparecia ao colo da tia. Esta tia, que já faleceu, alimentava-o e tratava dele. Agora está mais magro e muito degradado.”

Passaram-se quatro anos e centenas de ambulâncias foram accionadas para socorrer o mesmo homem em autocarros e paragens. António quer atenção e nada melhor que um autocarro cheio para o fazer.

“Também nos pede para o levarmos para o hospital, onde lhe dão comida”, diz Alexandre Costa, um dos técnicos com mais tempo de INEM. A jogada é arriscada. “Muitas pessoas sentem-se tão indignadas que, quando se apercebem da farsa, querem bater-lhe”, diz Jorge.

António não é o único obcecado pelas ambulâncias amarelas. Paulinho Mendes adora simular crises convulsivas.

“Até sabe como espumar da boca”, sublinha Jorge Ramos. “Faz isso para as pessoas tratarem dele e para andar de ambulância. Pendura-se na janela e arregala muito os olhos.”

Quando o INEM chega, normalmente à zona de Arroios, e percebe que vai ser desmascarado, começa a gritar que tem “bichos na cabeça” e se os técnicos se recusam a transportá-lo para o hospital berra por auxílio, acusando-os de “lhe estarem a bater”. “Por vezes, torna-se embaraçoso”, diz Jorge.

A trilogia só fica completa com Vítor Conde, um alcoólico inveterado. “Perdi a conta ao número de vezes que o fui buscar”, diz Carlos Lopes, no INEM há 11 anos.

“Primeiro, era aos domingos. O Conde vinha da Brandoa para a Feira do Relógio, arrumava uns carrinhos e ia gastar as moedas em copos. Depois, ficava com fome. O que fazia? Procurava um sítio movimentado e atirava-se para o chão. A primeira pessoa que passava chamava o INEM e lá íamos nós. Ainda me enganou duas vezes. Depois, nunca mais.”

Este cinquentão, de barba por fazer e ligeiramente coxo, apercebeu-se de que o truque resultava e expandiu o raio de acção. Hoje, tanto pode actuar no Saldanha como no Cais do Sodré.

“O Vítor tem ficha em todos os hospitais de Lisboa, aonde vai para comer”, diz Carlos Lopes. “É infalível a fazer-se de inconsciente. Não se mexe! Já o vi na Alameda rodeado por três carrinhas da PSP e em frente ao Hospital Curry Cabral, a ser imobilizado por tripulantes de uma ambulância privada. Só se levanta na presença do INEM porque sabe que o conhecemos.”

Estes casos aparentemente inofensivos são uma amostra de um gasto público desnecessário de fundos e de meios. Em 2010, o INEM recebeu 1.430.656 chamadas, 739.637 das quais resultaram no envio de viaturas médicas. E teve uma despesa total de 83 milhões de euros anuais. O INEM não dispõe de dados oficiais quanto ao número de falsas emergências, mas os técnicos são unânimes em dizer que 60% dos serviços que fazem não são casos com sintomas de urgência.

Pior é a utilização desnecessária de meios. “Tentamos explicar a estas pessoas que não podem chamar o INEM sem fundamento e há muita gente que nos critica porque eles são uns ‘pobres coitados’. Pergunto-lhes se continuavam a pensar dessa forma se um familiar precisasse de uma ambulância e ela estivesse ocupada com um bêbedo ou um louco”, desabafa Carlos Lopes.

A compulsividade de António ou de Conde é apenas um exemplo, mas há muitos outros casos: o álcool e a solidão representam a maior parte das falsas emergências.

Lumiar, 23h. Uma senhora septuagenária espera pelo INEM sentada no cadeirão da sala, enquanto vê televisão. Está sozinha. Os técnicos perguntam-lhe desde quando. Ela responde “desde sempre”. Diz-se com tonturas, mas não apresenta quaisquer sinais de preocupação. Mesmo assim, pede para ir ao hospital. Por precaução, o CODU (Centro de Orientação de Doentes Urgentes) ordena o transporte. A senhora levanta-se, troca de roupa, penteia-se em frente ao espelho, espalha batom rosa pelos lábios e vai pelo próprio pé para a ambulância. Por fim, admite que só na sala de espera das urgências arranja companhia para falar.

“Tínhamos uma senhora, de Alvalade, que nos chamava todos os dias pouco depois das 24h, queixando-se de dores no peito e de falta de ar. Tinha sempre a porta aberta e, quando chegávamos, só queria desejar-nos boa noite. Pedia-nos para a taparmos e desligarmos a luz”, conta Alexandre Costa.

O abandono de idosos “é um fenómeno crescente”, também para José Azevedo, técnico do INEM do Porto. “E não apenas nas classes sociais mais desfavorecidas. Muitas vezes, entro em mansões que julgo estarem cheias de gente, até que chego a um quarto onde está uma velhinha sozinha. As famílias desprezam-nos.”

No Natal ou noutras épocas festivas, esse abandono aumenta:

“Nos dias 21 ou 22 de Dezembro, crescem as chamadas para ir buscar idosos acamados. Os filhos querem ir de férias sem eles e inventam urgências para que sejam transportados para o hospital. Assim que se vêem livres deles, desligam os telemóveis e trancam a porta de casa até ao início do ano. Os hospitais são obrigados a retê-los, transformando-se em depósitos de acamados. As pessoas ficam a dormir em macas nos corredores”, diz Alexandre Costa.

Em muitos outros casos, o INEM é chamado apenas para levantar um doente inválido ou deficiente que caiu da cama. Ainda há quem recorra às ambulâncias para pedir boleia ou quem se apresente com sacos de plástico cheios de medicamentos e radiografias para pedir uma opinião médica aos técnicos do INEM – que não estão autorizados a dá-la – ou para solicitar transporte até ao hospital:

“Há pouco tempo pediram-nos para transportar um homem para uma consulta externa no Curry Cabral. O transporte foi autorizado e a consulta nem estava marcada. O doente entrou pela ‘porta do cavalo’, porque tinha combinado uma hora para falar com o médico. E foi numa ambulância pública!”, conta Carlos Lopes.

“Já para não falar dos que nos chamam porque se assustam com algum sintoma anormal de um familiar e, em vez de o transportarem de carro, esperam por nós e vão de automóvel atrás da ambulância. As pessoas ainda acreditam que se chegarem de ambulância ao hospital podem ser atendidas mais rapidamente.”

A SÁBADO sabe que o INEM emitiu uma norma interna para transportar os doentes em todas as ocorrências, mesmo que existam grandes suspeitas de se tratar de uma emergência falsa. “É mais fácil transportar tudo do que arcar com as consequências se um desses casos correr mal. Os riscos de um processo judicial são maiores do que o gasto”, diz fonte do INEM, que prefere o anonimato.

Muitos técnicos do INEM dizem que nem todos os serviços podem ser gratuitos – as falsas emergências, por exemplo, deviam ser taxadas. Além disso, defendem uma forte campanha de divulgação sobre emergência médica nas escolas e na televisão pública. Em 2006, o INEM lançou uma acção televisiva contra as chamadas falsas: dizia que recebiam diariamente 66 chamadas sem fundamento, correspondentes à saída inútil de 25 ambulâncias. Os telefonemas falsos diminuíram, o mesmo não acontecendo com as falsas emergências.

É ao CODU (Centro de Orientação de Doentes Urgentes) que vão parar todos os telefonemas, depois de uma primeira triagem feita pela polícia. Os técnicos são formados para detectar falsos alarmes, principalmente pela análise da emoção do interlocutor ao telefone. Mas há quem minta muito bem.

“Este Verão, um homem fez-se passar por pescador e disse-nos que tinha resgatado um banhista do mar, na praia da Trafaria. Garantiu que a vítima não respirava e, ao telefone, simulou que lhe estava a fazer respiração boca a boca e massagem cardíaca. Quando a ambulância e o veículo da VMER (Viatura Médica de Emergência e Reanimação) lá chegaram, não encontraram ninguém”, diz Jaime Naia, coordenador dos operadores do CODU de Lisboa.

Tal como os técnicos de ambulância, os operadores telefónicos também têm utentes habituais que ligam para o 112 só para falar. Muitos já sabem que sintomas indicar para terem direito a ambulância: falta de ar, dor no peito ou dormência prolongada nos membros. Outros ligam para pedir um táxi ou o número da Telepizza mais próxima de casa. E não falta quem recorra a argumentos absurdos para exigir uma ambulância:

“Já me ligaram para dizer que entalaram um dedo na porta, que bateram com o braço e fizeram um hematoma, que tiveram um pesadelo e não conseguem dormir ou que o filho está a chorar há horas. Estes telefonemas só servem para entupir a linha e aumentar o tempo de espera”, diz Jaime Naia.

Na rua, Alexandre e os colegas desesperam sempre que se cruzam com mais uma falsa emergência. Estão cansados do Sergei, que cai de bêbedo e leva as pessoas a chamar o INEM; do César, que se atira para o chão, à espera do mesmo; do Hermelando, que se deita em cima das linhas do eléctrico, fingindo ter sido atropelado; do Vitalino, tantas vezes encontrado falsamente inanimado à saída das rotundas do Bairro da Cruz Vermelha; e do Quim Maluco, que se atira para o meio da estrada para ter boleia da ambulância para o Hospital de São João, que fica ao lado de sua casa, no Porto.

“O Fernando, um cliente habitual do INEM Porto, já conseguiu accionar quatro ambulâncias em 45 minutos”, conta José Azevedo.

A todos estes casos, os técnicos do INEM contam a história infantil de Pedro e o Lobo, para tentar explicar que, um dia, podem precisar realmente de uma ambulância e ninguém acreditará neles. Hugo Neves, técnico na base da Amadora, viveu essa história, com um fim trágico:

“Enquanto bombeiro, fui chamado diversas vezes a casa de um homem com problemas psiquiátricos e de alcoolismo, que se chegava a mutilar para ir para o hospital. Algumas vezes levei-o, outras, não. Um dia, a irmã, com quem vivia, e que tinha diabetes e problemas de alcoolismo, precisou mesmo de ser transportada para o hospital. Ele pediu-me muitas vezes para ir com ela, mas nós só podemos levar uma pessoa na ambulância e não o levei. Assim que deixámos a mulher na urgência do Amadora-Sintra, reparei que havia uma grande agitação no IC 19. O rapaz correra atrás da ambulância, atravessara bêbedo o IC 19 e fora brutalmente atropelado por um táxi. Mesmo não querendo, pensei muitas vezes se não teria salvo aquela vida se o tivesse transportado.”


* A Abnegação em face da loucura,do medo e do abandono, cabe tudo nesta notícia.

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