03/07/2011

JORGE FIEL


A parábola da vesícula

Quando acordei a meio da noite com uma desagradável sensação de enfartamento, atribuí logo as culpas a uns tomates secos ao sol que comera ao jantar e tinham estagiado largas semanas dentro de um frasco aberto no frigorífico.
Com o passar dos dias e uma dieta forçada, os sintomas foram-se aliviando, mas não completamente. Até que tropecei no meu amigo Rui Ponce Leão (provavelmente o médico mais adequado para tratar de mim, já que antes de se dedicar à medicina no Trabalho se especializou em medicina Legal), que foi rápido e certeiro no diagnóstico.
O Rui ilibou imediatamente os tomates secos ao sol. Qual intoxicação alimentar, qual carapuça! Eu padecia de uma vulgar crise na vesícula. Receitou-me dois medicamentos milagrosos, que me devolveram o bem estar, e aconselhou-me a fazer uma ecografia à vesícula, que revelou a presença hostil de duas pedras.
Com a colaboração de um outro amigo (o cirurgião Eurico Castro Alves), a intervenção de extracção das pedras ficou marcada para o Hospital de Santo António.
Passada a indisposição e aprazada a solução, foram felizes e despreocupadas as semanas que antecederam a operação. O pior estava para vir.
Depois de ter passado uma noite em branco no hospital, tive a oportunidade de constatar os pequenos inconvenientes de conviver durante onze dias com os quatro agrafos que fechavam os buracos abertos para a laparoscopia.
Quando se tem a barriga agrafada de fresco, rir é uma experiência que rapidamente evolui para o choro. É de ir às lágrimas, não de contentamento - mas sim de dor.
Esta complicada esquina da vida em que fomos apanhados e nos vai levar metade do 13º mês lembrou-me a logo a minha operação à vesícula. Nós já sabíamos que iríamos sofrer, mas vivemos felizes e despreocupados até chegada a hora de finalmente rimos à faca. A partir de agora é que as coisas vão doer.
Maquiavel recomendava ao príncipe que fizesse o mal todo de uma vez e o bem a pouco e pouco. E todos sabemos que a maneira mais indolor de arrancar um adesivo é de uma vez só - e não aos bocadinhos.
Por isso, todos rezamos para que Passos Coelho tenha ontem apresentado o mal todo de uma vez. Já percebemos e interiorizámos que vamos ter menos dinheiro para gastar, menos crédito fácil e barato, menos investimento público, mais desemprego com menos subsídio de desemprego, pensões mais baixas e serviços mais caros, como gás, transportes e comunicações. Mas poupem-nos por favor à tortura de um novo plano de austeridade por cada estação do ano. Quando se corta a cauda ao gato é preferível cortá-la de uma vez - e não aos poucos.

IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
01/07/11

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