O amigo FMI
A Europa que devia ser solidária transforma-se no novo papão do capitalismo selvagem. Está na hora de treinar as letras "european go home, e leva o FEEF contigo!"
Algo vai mal quando se começa a olhar para o FMI como o tipo a quem cabe o papel de fazer de polícia bom. Não é que eu partilhe daquela visão que faz do FMI a personificação do Mal na Terra. Mas, quer se queira quer não, o FMI é o FMI, é aquele senhor que só aparece quando as notícias não são boas - o que nos leva a confundi-lo com as próprias más notícias, mas isso é outra discussão. O que aqui importa é que o FMI significa sarilhos, uma espécie de cobrador de fraque preto que chega aos países disposto a todo o tipo de maldades, incluindo partir pernas, para que as contas passem a andar na ordem e para que 1) as dívidas sejam pagas e 2) o país volte a poder tomar conta de si próprio, como qualquer adulto responsável. Mas não é isso, exatamente, o que se está a passar.
Não é normal o FMI estar a chamar a atenção para a necessidade de aplicação de medidas de estímulo ao crescimento, e não apenas medidas de contenção de custos e de reequilíbrio das contas públicas. Não é normal o FMI manifestar-se preocupado com a dimensão da crise recessiva que os planos de resgate estão a provocar na Irlanda e na Grécia, e estar com medo que o mesmo se venha a passar em Portugal. Não é normal o FMI preocupar-se com a má imagem com que pode sair destas intervenções de resgate coordenadas pela Comissão Europeia - porque, embora não pareçam, são de resgate. Ou seja, não é normal que o FMI esteja a ficar preocupado com a violência das metas traçadas pelos membros europeus destas troikas de intervenção. Alguém anda a ser mais papista que o Papa.
Seja por força das eleições regionais na Alemanha, que atiraram a chanceler Merkel para um discurso de dureza germânica a que não estávamos habituados nela. Seja por causa das eleições na Finlândia, onde se formou, nas urnas, uma complicada maioria de direita, que começa nos sociais-democratas, continua nos conservadores do Partido da Coligação Nacional, o vencedor destas legislativas, e acaba numa realidade que, por enquanto, ainda não temos por cá, a extrema-direita populista dos Finlandeses Verdadeiros, agora a terceira maior força do país, a apenas 0,1% da segunda e a 1,4% da mais votada, um resultado que pode levar a que a Finlândia se recuse a participar no fundo de resgate de Portugal. Seja por força das nuvens da crise financeira global, as antigas, que ainda não se dissiparam inteiramente, ou as novas, que se formam, gradualmente, no horizonte, à medida que países ricos do mundo - é verdade, às vezes esquecemo-nos de que estamos na zona dos países ricos do mundo - caem na bancarrota, uns atrás de outros. Seja, ainda, por causa do desnorte em que se encontram os teóricos e os políticos do capitalismo e do liberalismo, ultrapassados pelas (inexistentes) regras dos mercados financeiros globais. Seja, por fim, devido a algo que é muito mais europeu que mundial e que, em bom rigor, nunca foi diferente do que é hoje, desde o dia em que nasceu - a difícil conjugação da psicose alemã da inflação com a existência de uma zona euro com economias tão díspares -, a verdade é que alguém anda a ser mais papista que o FMI.
Esse alguém é a Alemanha, com a sua influência quer no Banco Central Europeu, que acaba de tomar a muito discutível decisão de aumentar as taxas de juro europeias de referência, quer na generalidade das outras instituições e fontes de poder da União, sempre balizadas por uma disciplina monetária inflexível, marcada ao ritmo dos interesses germânicos.
De Paul Krugman, que acaba de "acusar" claramente a Alemanha de estar a sacrificar as economias periféricas da Europa, impondo-lhes um empobrecimento profundo e generalizado, apenas para garantir que mantém os salários alemães estáveis e a inflação doméstica controlada (o que, segundo lembra, abstraindo de tudo o que isso significa de mau, é uma decisão correta do ponto de vista teórico), a João César das Neves, que coloca a questão num patamar mais político - a dificuldade de dar melhores condições de taxa de juro e de prazo de pagamento a Portugal, em relação não só à Grécia e à Irlanda, mas também à Alemanha e aos países do Norte da Europa -, começa a formar-se uma preocupação generalizada com a escalada das bancarrotas (já começou o ataque especulativo à Espanha?), com a profundidade das recessões criadas nos países ajudados, com a absoluta ausência de perspetivas de crescimento para os próximos anos nos países socorridos e, sobretudo, com a absoluta falta de sensibilidade, e de solidariedade, da "Europa", perante tudo isto.
A História tem destas coisas. Em Portugal, nomeadamente nas duas intervenções anteriores, as pessoas tendiam a olhar para o FMI como uma espécie de agência do capitalismo impiedoso norte-americano. Era comum, até, ver-se escrito nas paredes frases do tipo "yankee go home, e leva o FMI contigo!". Desta vez, pelo andar da carruagem, é melhor começarmos a treinar as letras "european go home, e leva o FEEF contigo!".
A União Europeia, que devia ser um espaço emblemático de solidariedade, até já rouba o lugar de papão do capitalismo selvagem ao FMI. Quando isto acontece na Europa, alguma coisa de muito mau está a acontecer no mundo.
IN "VISÃO"
20/04/11
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