O ritual
Assistimos a um ritual. Entregamos os povos, os pobres, os remediados e as conquistas de meio século a um novo deus. Como os antigos, mesquinho, vingativo, irracional. Como os novos, sem rosto, corpo ou nome - chamamos-lhe, por facilidade, de 'mercados'. Entregamo-nos a este sacrifício na esperança de nos purificarmos dos nossos pecados. E o maior de todos: termos imaginado um dia que podíamos viver, num continente fustigado por tantas tragédias, com o mínimo de dignidade. Quanta soberba, explicam-nos os sacerdotes.
Na próxima quarta-feira teremos um outro ritual. Com tanta gente reduzida ao trabalho à jorna e subjugada na sua liberdade aos caprichos de novos negreiros, é quase anacrónico o direito à greve. Mas todos sabemos que depois destes sacrifícios vêm ainda mais. Porque aquilo a que assistimos não é apenas a uma crise. É a uma revolução. Tentará destruir os alicerces do edifício em que temos vivido - o Estado Social, o direito laboral, as democracias nacionais, o pluralismo informativo -, para sobre as ruínas dele erguer um enorme casino.
Se a greve correr bem e parar o país, será uma demonstração de força que ainda poderá vir a contar na equação de algumas decisões políticas. Se não impedir mais austeridade, que ao menos consiga que ela seja distribuída com mais decência. Se a greve correr mal, os que estão a pagar a crise ficarão ainda mais frágeis. Sabendo que vivemos um momento histórico, trata-se de uma escolha essencial. Mesmo se formos derrotados, ficará na nossa memória: de que lado estivemos quando tudo o que tínhamos nos foi tirado?
Os abutres
A Irlanda tem mesmo de se socorrer do apoio externo neste momento? Não. É a Europa que a obriga a isso. A Irlanda só teria de voltar aos mercados das dívidas em abril de 2011. Os juros da sua dívida são, neste momento, meramente indicativos da sua situação. Então porque é obrigada pela Europa a pôr a cabeça no cepo? Porque mais bancos, além daquele que já afundou o Estado irlandês, estão com a corda na garganta. E precisam de mais dinheiros públicos.
Todos os dias nos explicam que estamos como estamos porque nos endividámos. Para pagar o Estado Social, garantem. É falso. A Europa está como está porque teve de salvar os bancos das suas próprias aventuras. E salva duas vezes: injetando dinheiro público nas instituições financeiras e pagando juros a quem aproveita a crise que criou para ganhar liquidez. Sim, estamos reféns da banca. Não porque precisemos dela, mas porque ela precisa de nós e é demasiado poderosa para cair. E os países periféricos pagam a fatura pela sua posição marginal porque, graças à injusta arquitetura política da Europa, os do centro tentam isolar os infetados para saírem ilesos.
As políticas de austeridade que são impostas à Grécia, à Irlanda e a Portugal têm apenas uma função: desviar os fundos que eram usados no bem estar dos cidadãos para os cofres de quem andou a jogar e perdeu. Os efeitos estão à vista. O único país que aplicou a receita extrema - a Grécia - está cada vez mais longe de se salvar. Todos os seus indicadores pioram a cada dia que passa. E é através desta sangria que a banca se vai conseguir reerguer. Deixando um rasto de destruição no seu caminho.
IN "EXPRESSO"
20/11/10
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