Vivemos a primeira guerra civil?
Há duas semanas atrás um amigo meu foi baleado. Mataram-no. Esta frase podia ser um modo chocante de abrir uma crónica. Mas não é. Já não é. Porque ser-se baleado é hoje coisa corriqueira. Os casos de assassinato acumulam-se e começam mesmo a ser do domínio da banalidade.
Depois da morte de um dirigente das alfândegas, retomou-se o triste desfile de assassinato de agentes policiais, capítulo que se pensava já encerrado. A mensagem dos criminosos é clara: são eles que querem mandar. Somos um Estado de Direito, sim. Que para continuar a ser não pode dar guarida – uma espécie de cidadania conferida na sombra – aos que nos matam e que matam o Estado de Direito.
Alguns destes casos de gente assassinada no desempenho das suas funções de Estado ficam em suspenso como se as vítimas fossem condenadas a uma condição de anonimato. Como se ficassem anonimortas. Não basta que elas tenham sido mortas. É como se nunca tivessem vivido. Além da vida que lhes foi roubada, é-nos raptado a nós o luto de uma perda. Mais do que um defunto, a pessoa converte-se em ninguém. Uma pedra de silêncio e poeira sugere a pior das condenações: a anulação da memória. Uma lápide, feita de nada, anuncia: aqui nunca viveu ninguém. E se ninguém morreu, então, não há que dar explicações, não há que prestar contas.
Escrevo estas linhas amargas no dia em que se comemora o nono aniversário da morte de Siba-Siba Macuácua. A nação espera ainda uma luz esclarecedora, um resultado nem que seja sumário das investigações que se prolongam indefinidamente. Escrevo “a nação espera...” e os meus dedos hesitam. Será realmente que os moçambicanos ainda esperam? Ainda têm esperança que o caso se esclareça? Para o caso do dirigente das alfândegas, Orlando José, quantos esperam? E para outros, vários outros, quantos verdadeiramente esperamos?
De cada vez que um caso policial com esta dimensão simbólica fica por esclarecer o que ocorre é uma espécie de duplicação do crime. Os mortos são re-mortos. E um outro assassinato ocorre dentro de nós. O assassinato na crença da justiça e na esperança de um mundo mais justo. Essas pequenas mortes interiores acumulam-se como um lodo no fundo de lago. Um dia destes olhamo-nos no espelho e já não nos vemos, poluída que está a alma por esses resíduos de descrença e ressentimento.
A velha máxima do “crime não compensa” parece não se confirmar nem aqui nem no mundo. Pequenas coisas, mas de enorme importância metafórica poderiam ser feitas pelas autoridades. Dou um exemplo: Carlos Cardoso foi um herói na luta contra a corrupção. Porque razão apenas a família e um grupo de colegas e amigos celebram a memória deste combatente? Porque motivo, da elite política nacional, apenas Graça Machel homenageou publicamente este bravo jornalista? Não haveria todo o sentido político em associar politicamente o nome do governo ou dos partidos a este caso exemplar de defesa de um país sem medo? Para quem tanto apela para a participação pública na luta contra o crime organizado, como se explica tanto esquecimento na celebração de alguém que deu a vida nessa mesma luta?
A guerra com a RENAMO não foi exactamente uma “guerra civil”. Foi um conflito importado de fora, em que forças militarizadas elegeram quase sempre alvos civis, escolhidos sem claro critério político ou ideológico. Hoje, pela primeira vez, grupos civis atacam sistematicamente não apenas outros civis, mas, sobretudo, quem no exercício da autoridade, pretende consolidar uma sociedade regida pela justiça e pela transparência. Esta é uma guerra civil. Silenciosa. Mas mortal.
Estamos, todos nós, no limiar de um destino: ou mudamos a nossa relação com a aceitação desta tão desordenada ordem ou viveremos num país governado pelo medo.
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