O franquismo e o salazarismo
Ana Vicente *
1939-1942
Vitória do general Franco na Guerra Civil, iniciada em 1936, com o apoio muito concreto e significativo, de variado tipo, do regime português. É neste contexto que os governos dos dois países subscrevem, em 17 de Março de 1939, o Tratado de Amizade e Não Agressão entre Portugal e Espanha, que mereceu um protocolo adicional em 29 de Julho de 1940. Entretanto opera-se a consolidação do poder do Caudilho em Espanha, o poder central de Madrid firma-se e os regionalismos/nacionalismos são reprimidos e controlados. A grande maioria da população espanhola vive com graves dificuldades que roçam níveis de miséria absoluta.
Nesta primeira fase da Guerra Mundial, Franco coloca-se claramente do lado do Eixo, e encara mesmo a hipótese de entrar na contenda. É Ministro dos Negócios Estrangeiros de Espanha o seu cunhado Ramon Serrano Suñer, que alimenta a opção de Franco e que revela animosidade e desprezo pelo vizinho português. Em 1940, há sectores da Falange espanhola que advogam a anexação rápida e imediata de Portugal. Franco, que também a pretendia, não considera o momento oportuno.
Salazar, entre 1936 e 1947, acumula a presidência do governo com a pasta dos Negócios Estrangeiros, e mantém uma posição de habilidosa neutralidade face aos dois blocos, sem jamais renegar a aliança com o Reino Unido. Como escreveu Augusto de Castro, "Portugal e Espanha ou serão ambos neutrais, ou nenhum deles o será." Por isso mesmo, o chefe do governo observa as ambivalências espanholas com grande cuidado e algum temor e mantém contactos permanentes com Madrid. No plano interno continua a vigilância permanente e eficaz da polícia e da censura. O racionamento é introduzido a pretexto da Guerra e as dificuldades económicas da população são muitas.
1942-1945
Segunda fase da Guerra. A perspectiva de vitória dos Aliados torna-se gradualmente mais clara. O Conde de Jordana substitui o cunhadíssimo, como era conhecido Serrano Suñer, e dado o desenrolar das diversas frentes de guerra, assim como a postura muito mais maleável do Ministro dos Negócios Estrangeiros, a Espanha aprofunda a sua neutralidade e procura, através da 'janela' portuguesa, contactos com o mundo ocidental. Salazar cede os Açores aos Aliados em Outubro de 1943.
1945-1949
As esperanças de uma transição a curto prazo para uma monarquia constitucional, assumida por D. Juan de Bourbon, não servem os interesses de Francisco Franco que coloca a monarquia num horizonte longínquo. D. Juan e a família tinham encontrado refúgio em Portugal. O primogénito D. Juan Carlos parte para Espanha para aí receber uma educação adequada, preparatória para a sua função de monarca. A Espanha encontra-se num isolamento internacional profundo — com a excepção de Portugal e a Santa Sé, em 1946, nenhum país se fazia representar a nível de embaixador, junto ao governo espanhol.
Entre 22-27 de Outubro de 1949, o general Franco, acompanhado por sua mulher, Dona Carmen Polo y Martínez Valdés, vem a Portugal em visita oficial. Chega a Lisboa, vindo de barco a partir de Vigo, na Galiza, para frisar que a Espanha também era uma nação atlântica e instala-se no Palácio de Queluz. Os discursos oficiais falam de 'pátria irmã' ou de 'Portugal irmão'. Durante esta visita oficial, a primeira e a última que faria a um país estrangeiro, Franco recebeu o título de doutor honoris causa pela Universidade de Coimbra e foi nomeado general honorário do Exército português. Contudo, apesar das várias tentativas realizadas, não conseguiu que D. Juan de Bourbon acordasse num encontro. Por sua vez, o Presidente da República Marechal António Óscar Carmona foi nomeado tenente-general do Exército espanhol. Neste período, Franco coloca como meta, inspirando-se na ideologia fascista italiana, a auto-suficiência económica do país, meta que iria abandonar a partir de 1959, face à persistente penúria.
A oposição democrática portuguesa perde igualmente a esperança – a vitória dos Aliados não prenunciou o fim do apoio ocidental ao regime salazarista e muito menos a abertura do próprio regime. Pelo contrário, o anticomunismo seguro de Salazar promoveu-o a um parceiro não desprezível que foi mesmo convidado pelos E.U.A. a integrar os membros fundadores da NATO (Organização do Tratado do Atlântico Norte) em 1949, sendo um dos objectivos principais desse pacto a luta contra a "expansão comunista". Para grande consternação do general Franco, a Espanha não foi nem convidada nem admitida, o que aliás causou sérios problemas nas relações bilaterais. O governo espanhol alegava que Portugal, à luz do Tratado de Amizade e de Não Agressão, e do seu Protocolo adicional, não poderia aderir por si só e que era também seu dever servir de mediador junto aos firmantes do Pacto, para fazer valer as pretensões espanholas. As negociações foram intensas e por vezes acrimoniosas mas a Espanha acabaria por aceitar o inevitável, pois Salazar não iria, obviamente rejeitar o valioso convite que lhe fora dirigido pelos países fundadores. Por sua vez, em 20 de Setembro de 1948 tinha sido prorrogado, por mais dez anos, o Tratado de Amizade e Não-Agressão.
1950-1960
Na década de 50 assiste-se a um curioso fenómeno – enquanto a Espanha inicia um gradual processo de modernização e de adaptação aos ventos da história, mitigando o seu isolamento (faria um acordo militar com os EUA em 1953, nomeadamente), o regime português fecha-se sobre si próprio. Apavora-se com o processo de descolonização africana, com o despertar dos movimentos independentistas bem aceite pelas potências ocidentais, treme perante a hipótese de perder Goa, Damão e Diu para a União Indiana, reprime severamente qualquer proposta de evolução do sistema político como foi tentado durante a campanha eleitoral para a presidência da República de 1958, indigna-se quando sectores da Igreja Católica, incluindo um membro do episcopado, como no caso do Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, se atrevem a levantar problemas. O regime continua a falar em corporativismo como uma boa solução para o relacionamento social. Ambos os países entram para a ONU em 1955 mas Portugal adere por si só à Convenção de Estocolmo, fundadora da E.F.T.A. (Associação Europeia de Comércio Livre) em 1959.
1961-1968
O regime franquista aprofunda um processo de modernização da economia, abrindo-a ao exterior, fomenta a indústria, realiza investimentos públicos, opta pelo turismo como uma das traves mestras do crescimento económico, investe na educação e na formação profissional, aligeira o apertado controlo sobre a cultura e sobre a circulação das ideias. Opera a descolonização de Marrocos e a independência da Guiné Equatorial. Apoia, apenas de forma mitigada, as teses oficiais portuguesas na ONU, segundo as quais Portugal não tinha colónias mas sim províncias ultramarinas. Em Portugal, o governo, que continua corporizado em Salazar, rejeita qualquer possibilidade de negociação na frente colonial e opta pela atitude do 'orgulhosamente sós' face à hostilidade internacional.
Entretanto, a partir de 1961, rebentam com grande violência as lutas armadas em Angola, Moçambique e Guiné, conduzidas por grupos de guerrilha bem treinados e bem armados. A resposta das Forças Armadas portuguesas vai arrastar-se até 1974, constituindo o fulcro de toda a política em Portugal. Salazar não entende e não quer ver nem saber nada acerca das movimentações sociais desencadeadas pela luta contra o racismo nos EUA nomeadamente, pelos movimentos feministas e pelas organizações estudantis. As Universidades mantêm-se à margem da inovação e da criatividade e o fechamento chega a extremos tão ridículos como a ausência de qualquer curso de sociologia em todo o país.
Encerra-se assim, com algum esfriamento, o ciclo das relações entre os dois ditadores, cujas opções estratégicas já se encontram em planos bem distintos.
Conclusão
Os encontros entre os dois governantes foram marcados pela parcimónia. Entre 1939 e 1968 Salazar e Franco encontraram-se apenas: em Sevilha, a 12 de Fevereiro de 1942; na visita oficial de Franco a Lisboa, de 22 a 27 de Outubro de 1949; em Pazo de Meirás e no Porto, em 26 e 27 de Setembro de 1950, respectivamente; em 14 e 15 de Abril de 1952, em Ciudad-Rodrigo; de novo em Ciudad-Rodrigo, em 8 e 9 de Julho de 1957; em Mérida, de 20 a 21 de Junho de 1960; de novo em Mérida, em 1963. Os comunicados davam informações 'oficiais' sobre as matérias em discussão mas tudo indica que estes encontros serviam para analisar os posicionamentos dos dois países no contexto dos sucessivos cenários internacionais. Passado o complexo período da 2ª Grande Guerra e seu rescaldo, estava em causa o desejo de a Espanha ser admitida, quer na OTAN, quer na ONU, contando com a mediação de Lisboa para esse objectivo; Lisboa queria o apoio de Madrid à política ultramarina de Salazar. Um dos aspectos muitas vezes olvidado do relacionamento bilateral não oficial, numa época de fronteiras muito definidas e policiadas, era o grande volume de contrabando que se movimentava nos dois sentidos, mas de forma mais pronunciada de Portugal para Espanha. As guardas fronteiriças de um e de outro lado chegaram a matar pequenos contrabandistas apanhados em delito, o que deu azo a algumas notas verbais diplomáticas de teor bastante azedo. Na década de 60 ocorreu o fenómeno maciço da emigração clandestina de portugueses em direcção a França, atravessando a Espanha por vezes em condições de extrema dificuldade, conduzidos por redes de passadores espanhóis e portugueses.
De referir ainda a questão de Olivença, a cidade portuguesa e o seu termo, totalizando 42 mil hectares, tomada pelos espanhóis em 1801, na Guerra das Laranjas: os dois países acordaram a sua restituição a partir do Congresso de Viena de 1815, mas tal nunca se realizou. Salazar não se empenhou junto ao seu homólogo no cumprimento da restituição talvez por ter percebido que os espanhóis nunca cederiam e que tal assunto poderia danificar muito seriamente as relações entre os dois governos.
Caracterizando as complexas relações luso-espanholas, como são sempre as relações de vizinhança, o historiador e político Cláudio Sanchez Albornoz, o último embaixador da República Espanhola em Lisboa, escreveu que entre os dois países se ergueu uma fronteira "mais alta que os Pirenéus: séculos de hostilidade, séculos de receio, séculos de incompreensão, séculos de ambições e medos", mas que também existia "um hilo escondido / que nos aprieta a los dos", como reza uma canção de amor andaluza. Poder-se-á concluir que no período em apreço a vivência das populações dos dois países foi profundamente marcada pela personalidade e ideologia dos seus respectivos ditadores e que os regimes eram, em consequência, profundamente pessoalizados. Quer num caso quer noutro os sistemas em vigor desapareceram simultaneamente com o desaparecimento dos chefes sem que, evidentemente, se tenham apagado as profundas marcas impressas na História dos dois países que partilham o espaço da Península Ibérica.
Informação Complementar
30 anos de coabitação
O Franquismo e o Salazarismo constituíram um sistema de coabitação na Península Ibérica durante cerca de 30 anos que se revelou mutuamente útil. Os dois homens que deram nome a esse período eram, contudo, personalidades muito díspares – Francisco Franco Bahamonde (1892-1975) não foi feliz na infância. O pai, que chegou a Intendente-Geral da Marinha espanhola, era extremamente violento e os progenitores do Generalíssimo, como veio a ser conhecido, acabaram por viver separados. António de Oliveira Salazar (1889-1970) cresceu no seio de uma família de pequenos agricultores, num ambiente tranquilo, e estudou no seminário entre 1900 e 1908. Por outro lado, Salazar nunca casou e tanto quanto se sabe, não teve filhos. Franco era casado e pai de uma filha, e foi avô extremoso de seis netos. Salazar era professor universitário, Franco um militar de carreira. Salazar era oriundo de uma pequena burguesia profundamente rural, enquanto a família de Franco vivia e trabalhava na administração naval, na cidade de El Ferrol, na Galiza, desde o princípio do século XVIII. Franco abertamente cruel e sanguinário, Salazar calculista e simulado na sua crueldade. Franco gozando com a aquisição e o usufruto de bens materiais, Salazar de uma austeridade e de uma modéstia de estilo de vida muito acentuada. Franco praticando a caça e a pesca assiduamente, Salazar preferindo ocupar todo o seu tempo em estudo e trabalho.
No entanto, os pontos de convergência eram também muito vastos – um obsessivo apego ao poder que justificavam pela missão salvítica em que ambos se consideravam investidos; o culto do patriotismo e do nacionalismo; a prática do catolicismo como forma 'tradicional/nacional' da expressão religiosa; uma atitude profundamente conservadora perante a vida; uma valoração grande da autoridade, da ordem e da hierarquia; um anticomunismo visceral; uma representação de como 'devia ser' a vivência em sociedade que passava pela atribuição de papéis rígidos, mitificados e bem distintos às mulheres e aos homens. Contudo, poder-se-á afirmar que a 'dedicação' que Salazar ministrava ao seu país era mais desapegada e mais desinteressada do que a de Francisco Franco em relação a Espanha, pois o Generalíssimo cultivava uma marcada auto-adulação e incentivava o culto da personalidade.
Mas há que sublinhar que também houve profundas diferenças nas visões e estratégias que um e outro ditador tiveram ao longo das décadas de governação dos seus respectivos países, das quais a mais saliente tem a ver com a sucessão. Salazar não cuidou da evolução do regime nem permitiu que outros o fizessem. Os espaços de reflexão e de interrogação foram asfixiados. Em 1950, já com dezoito anos de regime, não se vislumbrava um futuro. Nos anos 60 a indefinição acerca desse mesmo futuro permanecia. Em contraste, desde 1947 que Franco tinha definido a sucessão, delineara horizontes, apontando para um regime monárquico, mesmo que se possa considerar que a principal motivação do espanhol teria sido garantir a sua manutenção no poder absoluto.
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