08/05/2022

PEDRO STRECHT

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Florescência

Caiu a máscara. Simbolica-mente, eis-nos, de novo, diante da revelação do nosso lado mais verdadeiro, aquele que permite revelar o que intencionalmente se esconde   

Os limoeiros florescem na saudade das mães / bordando devagar o bordado da sua dor. / Libertando, como uma plumagem verde, a / mansidão das noites, / a apaixonada arte do coração”, de Florescência pelo poeta José Agostinho Baptista.

Caíram as máscaras. Nas escolas, os professores vão conhecer as caras dos seus alunos. Estes, a daqueles que os ensinaram ao longo de tanto tempo (esse que é sempre bem mais intenso quando somos novos) presencialmente ou à distância. Sim, o tempo foi sempre de distância. Física, emocional e afetiva. Um lento, longo e doloroso encobrimento da expressão. Não vimos sorrisos e esquecemos como se media o riso. Foi difícil ou quase impossível a melhor perceção do outro e, assim, de si mesmo. Ficou muito por dizer, ou melhor ainda, faltou imenso por ver dizer: que fizemos do valor da palavra dita, da importância da relação que é a base de toda a comunicação?

Foi perto da primeira metade do século XX que o médico e psicanalista René Spitz falou dos “organizadores psíquicos” do bebé, afinal marcos fundamentais da sua evolução. O primeiro, era o sorriso: aquele que o recém-nascido esboça habitualmente até ao final do 1º mês de vida, quando responde aquele que o olha de perto, fixa e interage sorrindo também.

De facto, sabemos hoje melhor do que antes que é desde muito cedo que a criança organiza a sua estrutura emocional com base na leitura subjetiva que o outro faz de si mesmo. A Mãe, o Pai, os adultos que dela cuidam são verdadeiramente o seu primeiro espelho quando, para ela, é percetível a variação de expressões emocionais que acompanham o gesto, o toque e, naturalmente, a palavra.

Existe assim uma disposição afetiva de “sintonia mútua” como afirmava Daniel Stern, uma referência no estudo da primeira infância, que é a base da organização psíquica dos mais novos. Ela não é um mero estado subjetivo que condicione o outro, o objeto ou o mundo. Essa disposição afetiva é, em certa medida, o mundo no sentido da sua leitura e da sua vivência. É o motor do desejo de conhecer, do prazer de existir a essência de se ser…

Perguntam-me vezes sem conta se o uso das máscaras durante dois anos seguidos teve impacto psíquico no desenvolvimento global das crianças e dos adolescentes. Se já existem estudos que o demonstrem, quais as áreas mais afetadas e, quase todos, se preocupam principalmente com a questão da perda de conhecimentos académicos ou escolares. Claro que sim, basta ouvir educadores, professores, mães e pais preocupados. Mas, infelizmente, é possível ir mais atrás, a pontos fundamentais da dimensão humana em que para uns, a emoção será sempre um estorvo que se conseguiu controlar. Para outros, ela é a fonte e a expansão da relação e do próprio conhecimento (próprio e do outro) que durante todo este tempo se perdeu de forma tão vasta. Esse é a mais profunda dificuldade a recuperar rapidamente.

Caiu a máscara. Finalmente. Simbolicamente, eis-nos, de novo, diante da revelação do nosso lado mais verdadeiro, aquele que permite revelar o que intencionalmente se esconde, assumir quem se é ou como se é sem o uso excessivo ou desnecessário de certas defesas pessoais ou sociais. Veremos de novo expressões, traços, rugas na nossa face e na do outro, definiremos melhor quem é e como é quem no seu todo, viveremos de novo em maior proximidade física de que o contacto corpo a corpo é um belo exemplo: um abraço forte, um beijo de olá, outro de adeus, mais um até de compromisso amoroso, ainda que vago, vasto, infantil ou adolescente. Que bom!

De novo, e usando as palavras escritas no mesmo poema “Por amor perdido / atravesso os teus campos santos, deito-me ao / lado de quanto quis. / Consagro os meses em que das tuas sementes / se nomeia o fruto, / os limoeiros floridos”. Demorou muito a voltarmos a esta “estação inclinada, descendo para / o verão”. Mas vai valer a pena e se há coisa em que os mais novos são sempre bons é na sua capacidade adaptativa, na possibilidade de surpreenderem e, em si mesmos e nos outros, constantemente buscarem e revelarem o melhor do mundo.

* Pedopsiquiatra

IN "VISÃO" - 07/05/22.

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