12/08/2021

FRANCISCO LOUÇÃ

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Ir ao banco não é 

um passeio no parque

Com um programa com prazos curtos, verbas atrasadas de outros fundos estruturais e dinheiro a rodos, a tentação pode vir a ser inflacionar despesas, dourar programas medíocres, fazer compras de equipamentos sem nexo, mostrar serviço, satisfazer clientelas.

Não era precisa esta confirmação de uma obviedade, mas o curioso registo em que a direita tem anunciado o seu temor acerca do impacto da maré de fundos europeus confirma plenamente a estratégia do governo. Mete dó o modo como o protesto fica envergonhado dado que, de facto, não protesta contra nada e, sendo tão evidente que qualquer governo anterior faria o mesmo a papel químico, fica curta a indignação quanto ao algo simplório (ou matreiro?) “então já posso ir ao banco” de Costa para Von der Leyen. Há deslumbramento do governo, pois claro que há; há satisfação pelo momento e pela oportunidade, nem era de esperar outra coisa; há uma proclamadíssima vinculação da promessa de cheques aos resultados das eleições autárquicas, que se levante o primeiro desses partidos que não o tenha feito, por mais tenebrosa que seja a ligação. Tudo banal, tudo previsível, tudo copiado de distintos mestres anteriores.

Para o governo, os dinheiros pandémicos, que não são pouca coisa, 13,9 mil milhões em subvenções, tornaram-se a missão deste mandato. Tinha sido prometido um programa para habitação, que era um pregão sem cheta, e agora apareceu uma gaveta de onde financiar as casas; tem-se discutido o reforço da saúde ou da educação, e agora anuncia-se uma solução com as subvenções, só não se sabe quando; falava-se de agenda climática para entreter as eleições, agora terão que surgir resultados de programas concretos que hão-de aparecer. Sem estes dinheiros europeus, não haveria programa do governo ou, do que havia, sobravam as promessas e ficava o aperto; com a chuva de milhões, o palácio de S. Bento regurgita de ideias e de diligências. Surfar a onda dos fundos, na certeza de que os empresários se manterão caladinhos e ansiosos pelos convites até para o mais discreto dos cocktails em que o ministro apresente um powerpoint sobre os canais financeiros, borrifa o governo com um perfume de atração que o encanta. E é mesmo de encantar. Como ficou gravado em frases gloriosas na recente história política portuguesa, “quem não está não come” e “quem paga, manda”, pelo que é preciso reconhecer o “momento de ir ao pote”. Se tudo se resume a comer do tal pote, então quem está em cima manda mesmo.

Este perfume de poder tem consequências, pois contribui para mudar o tipo de discurso que a direita vai experimentando, consciente de estar presa na armadilha de resumir a sua alternativa ao ciúme acerca da oportunidade dourada que bateu à porta de Costa e sentindo-se forçada a buscar novas formas de agressividade e protagonistas que desloquem a atenção pública. Assim, quanto mais dinheiro há, mais a direita se trumpizará, do que a candidatura de Moedas parece ser para já o principal ensaio. Mas esta condição também acentua a tentação do PS de dar por garantido o seu maiorismo absoluto, tanto mais que estes recursos são extra-orçamentais, não passam pela maçada das votações parlamentares, e dá por certa uma maioria suficiente e até confortável. Profundo conhecedor dos circuitos intestinos da política nacional, Costa aposta na vontade dos dinheiros e dos favores políticos contra os tiroteios de temas vários ou de discursos tremendistas. Por isso, ao criticar os “casos e casinhos”, não está só a defender o seu combalido ministro da administração interna, está mesmo a dizer o que parece: que está convencido de que a couraça da indiferença quanto aos assuntos que não forem os dinheiros inclinará sempre a opinião eleitoral para o seu lado. Nisso tem razão.

O problema é que os dinheiros são um problema. Ao terminar 2020, havia 43% do programa Portugal 2020 por executar, sobram três anos de folga para correr atrás dos atrasos. Outro exemplo desta dificuldade é o programa Ferrovia 2020, a aplicar entre 2015 e 2024, que só tem 12,2% executados. Tudo tem alguma justificação, há processos pesados e de concretização burocratizada, que se tendem a desenvolver só no final dos períodos. O facto, em qualquer caso, é que nada tem sido cumprido nos prazos, que falta capacidade empresarial, que a administração pública perdeu vigor e estrutura técnica de direção, que não há plano e que as ideias também não abundam. Os fatores políticos podem ainda agravar esta doença, como no ano passado, o de pior execução orçamental numa década. Portanto, com um programa que tem prazos curtos e imperativos, com verbas atrasadas de outros fundos estruturais e com dinheiro a rodos, a tentação pode vir a ser inflacionar despesas, dourar programas medíocres, fazer compras de equipamentos sem nexo, mostrar serviço, satisfazer clientelas, correndo contra o calendário. Ir ao banco nunca é tão simples como parece, em todo o caso era conveniente que não se tornasse no nosso pesadelo dos próximos anos.

* Professor universitário, activista do Bloco de Esquerda

Editado a 09/08/21

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