08/06/2020

FRANCISCO LOUÇÃ

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A desigualdade é o vírus visível

Um em cada seis jovens perdeu o emprego devido ao tsunami covid-19 .

Três investigadores do FMI, Furceri, Loungani e Ostry, publicaram há dias um estudo abrangendo os impactos das cinco anteriores pandemias do século XXI (SARS em 2003, H1N1 em 2009, MERS em 2012, ébola em 2014 e zika em 2016). O que o estudo demonstra é que essas pandemias agravaram as desigualdades e que o processo continuou nos anos seguintes, mesmo depois de a doença estar controlada. Ora, as pandemias a que se refere o estudo alcançaram uma disseminação continental mas não mundial, não tendo conduzido a um lockdown generalizado. Por isso, os autores antecipam efeitos mais graves no contexto da covid-19, que impôs essas ruturas. Ainda para mais, ao procederem à análise das políticas agora adotadas, concluem que estas têm efeitos regressivos, ou seja, acentuam a desigualdade. A desigualdade é o vírus que continua a crescer e a disseminar-se em 2020.
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O passado que nos ameaça
Outros economistas acrescentam razões para preocupação. Sérgio Correia, do Federal Reserve Board dos EUA, e os seus coautores, Luck e Verner, estudaram os custos sociais da gripe de 1918, que poderá ter sido mais mortífera do que a atual pandemia, sobretudo para a população em idade ativa, e mediram a evidência disponível acerca da estratégia de recuperação económica então seguida em 30 estados dos EUA. A sua conclusão é que quanto mais intensa foi a resposta não farmacêutica (as medidas de confinamento e de proteção social) mais rápida foi a recuperação económica e que, por isso, o esforço de defesa da saúde pública foi virtuoso para a economia. A questão não é de somenos, até porque alguns governantes utilizam o argumento da alternativa saúde-economia para reduzirem as medidas sanitárias, como no caso de Trump e de Bolsonaro. Se Correia e os seus colegas tiverem razão, essa alternativa é falsa e é protegendo a saúde que se salva a economia.

O assunto é essencial para as escolhas imediatas. E coloca sempre em cima da mesa a questão da desigualdade, que deveria ser o guião para a escolha de políticas concretas na emergência.

A desigualdade agrava a doença
Seguindo essa preocupação, uma equipa dirigida por Carla Nunes, diretora da Escola Nacional de Saúde Pública, tem estudado uma hipótese fundamental: e se a desigualdade, que é agravada pela pandemia, é também um dos mecanismos sociais que facilita a disseminação da doença? Alguns dos seus resultados preliminares são descritos no gráfico e indicam que sim. Ao comparar a disseminação da covid-19 e indicadores de desemprego e desigualdade por países, a equipa da ENSP encontra uma correlação forte em vários casos, mas também diferenciações significativas.

Como se verifica, entre os países que tinham maior incidência da doença por 100 mil habitantes estão a Espanha e a Itália, que também são os que registam maior desigualdade e maior desemprego. Portugal destaca-se por uma contaminação média e por elevado índice de desigualdade. Trata-se de uma correlação e não de demonstração de causalidade, como é bom de ver. Estes dados sugerem em todo o caso a hipótese de que as condições sociais estejam relacionadas com a extensão da contaminação, em particular nalguns países. Em consequência, e se as indicações do estudo da equipa do FMI forem válidas, poderemos antecipar um prolongamento dos efeitos sociais desigualitários e desigualizantes. A questão social já é a principal questão económica de 2020 e continuará a sê-lo nos próximos anos. Isto não vai passar.

A desigualdade vem pelo salário e emprego
Seria de antever este impacto social, dado que os canais de transmissão económica da pandemia são o desemprego e outras formas de perda de rendimento e, considerando as primeiras indicações para as economias desenvolvidas e as emergentes, são os sectores populares mais frágeis que sofrem os piores embates. No caso dos EUA, de março a maio de 2020, o impacto da crise corrente no desemprego é maior do que a registada na recessão a partir de 2009. No mundo, um em cada seis jovens perdeu o emprego em consequência das perturbações económicas com o tsunami covid-19, segundo a OIT.

E, embora a publicação da informação estatística portuguesa seja mais lenta, o crescimento do desemprego entre nós parece ir no mesmo sentido: são mais 31,5% de desempregados registados nos Centros de Emprego entre 15 de março e 20 de maio e multiplicaram-se por oito os pedidos de subsídio de desemprego nessas semanas, de 13 para 123 mil, mas em números reais serão acima de 550 mil as pessoas desempregadas. Ao mesmo tempo, para mais de um milhão de trabalhadores, a austeridade começou com a perda de um terço do seu salário.

A pobreza e o desemprego, ou a desigualdade que geram uma e outro, ampliam a disseminação da doença, por fragilizarem as condições sociais da vida das suas vítimas, como é notado pelo estudo da ENSP. Seria de esperar que assim acontecesse, tanto pelas condições de habitação como de deslocação e de trabalho da população mais pobre. Mas também sabemos que, se as respostas à crise consistirem em agravar a desigualdade com reduções de salários e ajustamentos sociais por via de uma vaga de despedimentos, então o resultado será pior do que o da crise anterior.

ÍNDICE DE GINI
Em percentagem




Fontes: ECDC (covid-19, em 30 de abril de 2020); Banco Mundial (GINI — 2017; Taxa de desemprego — 2018).


Quanto a Pandemia não é Igual para Todos” Barómetro covid, ENSP, maio de 2020. Número de casos acumulados por 100 mil habitantes para os países indicados, comparados com os seus indicadores de desemprego e de desigualdade (medida pelo índice de Gini)

IN "ESQUERDA"
06/06/20

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