.
Mesmo dentro do mesmo país, esta pandemia revelou que existem desigualdades no acesso à educação. Como é que essas se combatem?
Um computador por aluno pode ser a solução?
HOJE NO
"PÚBLICO"
“O ensino à distância veio agravar as desigualdades existentes”
O desejo da presidente da Etiópia, que preside à Comissão Internacional sobre os Futuros da Educação da Unesco, é que o relatório sirva de guião para os países investirem na educação.
A crise da covid-19 expôs uma “imagem clara das desigualdades existentes” entre os diversos países afectados pela mesma, denuncia o relatório Nove Ideias para a Acção Pública - Educação, Aprendizagem e Conhecimento num mundo pós-covid-19, realizado pela Comissão Internacional sobre os Futuros da Educação (CIFE) da Unesco, presidida por Sahle-Work Zewde, presidente da Etiópia, conhecido esta sexta-feira.
.
Numa entrevista feita por e-mail, a governante revela preocupações
com os alunos que não conseguiram aprender durante este tempo em que as
escolas estiveram fechadas; e com as consequências económicas desta
pandemia, apelando à solidariedade entre os estados para esbater as
desigualdades. Este é um tempo que deve ser aproveitado para repensar a
educação, defende esta comissão, de que faz parte António Sampaio da
Nóvoa, embaixador de Portugal na Unesco.
O desejo de Sahle-Work Zewde é que este texto sirva de
guião para os países reflectirem e investirem mais na educação, mas
também que os mais desenvolvidos sejam solidários com os países em
desenvolvimento. Uma aposta que, lembra, tem um retorno certo. “É
forte a evidência de que os investimentos em educação contribuem para
economias mais robustas”, declara ao PÚBLICO. Depois deste relatório, a
CIFE continuará a trabalhar no sentido de apresentar novo documento em
2021.
Quais são os maiores desafios que esta pandemia trouxe à educação?
Devido
ao fecho generalizado das escolas em todo o mundo, a pandemia
representa um risco significativo para o direito à educação. Centenas de
milhões de alunos que exerciam esse direito à educação, indo à escola,
tiveram de encontrar outras maneiras de aceder à educação formal. A
mudança para o ensino à distância veio agravar as desigualdades
existentes. Pouquíssimos estudantes, no mundo, conseguem continuar a
aprender porque não têm acesso a um computador ou smartphone.
Para os poucos alunos que possuem esses dispositivos, podem também não
ter formas de aceder aos recursos educativos online — seja pelo custo,
localização geográfica ou por ambas as razões. Por exemplo, no
continente africano, o acesso à Internet é inferior a 40%, enquanto na
Etiópia actualmente é de apenas 18,6%. Além disso, apenas 17,8% dos
lares em África tem Internet, o que deixa muitos sem acesso a opções de
aprendizagem à distância. O maior desafio que enfrentamos é o de esbater
as disparidades. É urgente trabalhar em conjunto, dentro e fora
dos países, para reforçar a promessa de igualdade de oportunidades e
garantir o direito à educação para todos.
Os desafios não são os mesmos em todos os países?
Embora
a pandemia tenha apresentado desafios semelhantes, os recursos à
disposição de cada um varia muito, assim como as respostas educativas.
Muitos países fecharam escolas, alguns tentaram transferir o ensino para
plataformas online, outros usaram a televisão e a rádio quase
exclusivamente ou em complemento a essas plataformas. Temos de ser
extremamente vigilantes em relação aos países onde os estudantes não
tiveram acesso ao ensino à distância, especialmente os do sul, onde a
educação pública foi mais prejudicada, especialmente nos países
africanos. As disparidades entre países desenvolvidos e em
desenvolvimento são reais. Alguns países deram autonomia às escolas e
aos professores para desenvolverem e implementarem soluções, enquanto
outros tiveram respostas nacionais de cima para baixo. O que precisamos
fazer agora — e o que a CIFE está a fazer — é um balanço do que
funcionou, do que não funcionou e por que razão. Esse conhecimento
ajudar-nos-á a reimaginar alternativas e melhorar a resiliência dos
sistemas educativos, para estarem melhor preparados no futuro, caso seja
necessário voltar a fechar as escolas.
O que sabemos com certeza é
que o coronavírus se espalhou porque vivemos num mundo globalizado, e é
evidente que precisamos de nos coordenar em termos globais para
derrotar a doença e criar sistemas educativos mais fortes e equitativos.
A cooperação internacional, o multilateralismo e a solidariedade são
necessários quando se trata da saúde e educação, principalmente no que
diz respeito ao financiamento da educação.
Mesmo dentro do mesmo país, esta pandemia revelou que existem desigualdades no acesso à educação. Como é que essas se combatem?
Sem
dúvida que esta crise abriu as cortinas das desigualdades. Já existiam
antes, mas agora foram agravadas e acentuadas. A transição para o ensino
à distância, em resposta ao encerramento das escolas, revelou as
diferenças que já existiam há muito. Por exemplo, esse fosso
verificou-se em África, onde na região subsariana apenas 11% dos alunos
tem acesso ao computador e apenas 18% tem Internet em casa, em
comparação com as médias globais de 50% com computador em casa e 57% com
acesso à Internet. De igual modo, verificamos que em todos os países,
os estudantes de famílias ricas foram capazes de progredir na sua
aprendizagem durante esta crise, enquanto os mais pobres não.
Infelizmente, estas disparidades podem vir a agravar-se nos próximos
anos, alterando o percurso de vida desses jovens.
O que fazer?
As boas notícias são,
primeiro, os governos e os seus cidadãos reconhecerem a necessidade de
criar sistemas educativos mais inclusivos e equitativos. Segundo, ter a
capacidade de oferecer oportunidades iguais aos mais marginalizados. É
preciso determinação política e compromisso público. De facto, a
covid-19 permitiu-nos compreender onde é mais urgente investir. Por
isso, devemos usar esta crise como uma oportunidade para apostar na
inovação, usando a tecnologia a nosso favor.
Um computador por aluno pode ser a solução?
A ideia
de um computador por aluno está muito longe da realidade. Na maioria dos
países do sul, poucos têm acesso a computadores ou smartphones,
e menos ainda à Internet. Nesta crise em particular, os computadores
deram a oportunidade a alguns alunos de continuarem a estudar, de
estarem em contacto com os seus professores e colegas. No entanto,
também observamos que os dispositivos por si só não são suficientes.
Alunos e professores precisam de competências para tornar a aprendizagem
efectiva — as plataformas e os conteúdos de ensino à distância, ou
seja, o software da educação, são tão importantes quanto o hardware.
Além disso, esse acesso precisa de ser acessível, senão gratuito para
fins educativos e isso continua a ser uma miragem em muitos contextos.
Por fim, precisamos de lidar com questões mais complexas como a
confiança em plataformas comerciais que monitorizam os dados pessoais
dos utilizadores ou cobram taxas.
Uma das propostas do relatório é que os alunos tenham uma
palavra a dizer sobre o processo educativo. Como é que isso se faz na
prática?
Os alunos devem ser ouvidos, mas também devem
liderar. Em última análise, é a sua educação e o seu futuro que estão em
jogo. No passado, não ouvimos o suficiente as vozes dos jovens.
Compreensivelmente, eles estão profundamente preocupados não apenas com
as perspectivas de trabalho futuro, mas também com a sustentabilidade,
as mudanças climáticas, a desigualdade e a injustiça. Os sistemas
educativos devem adaptar-se para permitir que os alunos proponham ideias
e soluções. Por exemplo, os jovens na Etiópia e em todo o mundo estão
famintos por abordagens globais para os desafios globais. Os nossos
sistemas de educação devem fazer mais para construir uma solidariedade
global e intergeracional, necessária para preservar a saúde do nosso
planeta.
Como pode a CIFE pedir solidariedade entre os países, quando todos enfrentam problemas económicos por causa da pandemia?
As
fronteiras nacionais significam pouco para uma pandemia que é global.
Da mesma forma que, neste mundo globalizado, os problemas económicos
viajam rapidamente e não param nas fronteiras. Actualmente, não estamos a
enfrentar crises económicas localizadas, mas uma recessão global. Por
isso, será necessária uma resposta global.
* Uma boa entrevista.
.
Sem comentários:
Enviar um comentário