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"DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
Os 90 anos de Maria de Lourdes Modesto: a estrela de todos nós
Maria de Lourdes Modesto nasceu em Beja em 1 de junho de 1930 e é de longe a personalidade mais importante da cozinha portuguesa. Autora, mentora e figura de inelutável vocação cénica, que sempre dá prazer ouvir. Os seus livros estão em todas os lares e cozinhas do país e o seu modo único de partilhar a sua paixão deixa marcas profundas.
Os mais velhos lembram-se vagamente, os mais novos não têm sequer
ideia dos dois botões de rodar que havia na parte de trás dos
televisores - obviamente a preto e branco - e a que invariavelmente
tínhamos de recorrer para ver televisão. Um deles era o botão de
sincronismo, que fixava a imagem na base de tempo certa e impedia que
viajasse para cima e para baixo sem parar; o outro era o da obliquidade,
que repunha as proporções certas no ecrã e fazia desaparecer a sensação
de estar perante retratos cubistas, alinhando tudo.
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Quando a RTP
começou a emitir, em 1957, era com esses equipamentos que sentados e
quedos os portugueses assistiam aos diferentes programas, na sua maioria
em direto e sem possibilidade de falhas, pois não havia como repetir. Ainda
com estatuto de pioneira, a nossa televisão foi em 1958 fazer uma
reportagem ao Liceu Francês sobre uma peça de Molière que estava em cena
e na qual participava uma professora de trabalhos manuais daquela
escola.
Começa assim a vida pública da jovem Maria de
Lourdes Modesto, perante quem sucumbiu toda a equipa da RTP e a quem
logo ali foi lançado o convite para fazer um programa cultural na
televisão. Foi rápida a decidir, recusou o tal programa, mas aceitou
fazer um outro, orientado para as mulheres. Quis o destino que o
tema do primeiro fosse arranjos de flores e que em jeito de atrevimento
Maria de Lourdes optasse por mostrar como cozinhar e comer alcachofras.
Estamos no tempo dos diretos e a neófita estrela conquistou o país
inteiro com a naturalidade de gestos e discurso que ainda hoje tão bem a
caracteriza. Quando levou uma pétala à boca e comentou que era ótimo, Portugal
inteiro apaixonou-se pela professora de trabalhos manuais do liceu
francês que estava como peixe na água a fazer e a explicar ao mesmo
tempo. Não houve dúvidas de que ia passar a cozinhar na
televisão. A partir daí, toda a gente nas suas casas ajustava os tais
botões da televisão para que a imagem estivesse ótima quando a elegante e
sedutora Maria de Lourdes Modesto estava a cozinhar.
Foram
12 anos de carinho, crescimento e popularidade que juntamente com o TV
Rural de Sousa Veloso - iniciado em 1960 - foram porventura os dois
programas com maior audiência de todos os tempos. Maria de
Lourdes tinha o talento único do direto, nunca se atrapalhando nem
interrompendo quando sentia que do outro lado estava alguém a ouvi-la.
Tem inúmeros episódios hilariantes que de vez em quando partilha, e teve
a cozinhar a seu lado como convidados algumas das nossas figuras
míticas, caso por exemplo do chef João Ribeiro, do então Hotel Aviz.
Conta-se que num dos programas o grande cozinheiro revela que utiliza
muitas vezes ovos das galinhas do palácio de São Bento e Maria de
Lourdes não se fez esperar para se meter com o mestre por ele usar os
ovos do presidente do conselho, a que respondeu mas olhe que são muito
fresquinhos. Este tipo de intimidade imediata é um exclusivo dos grandes
comunicadores e por isso o programa atingiu a popularidade inédita e
irrepetível dentre vários outros que passaram pela ribalta televisiva. A
gravação de programas para posterior difusão permitiu mais tarde melhor
programação mas rapidamente ditou o afastamento da nossa estrela
cozinheira, por tudo o que tinha de impessoal e por não se entender com
os tempos e modos da nova forma de fazer televisão.
Investigação, reflexão e produção literária
A evolução foi natural, perante o imenso repositório de receitas,
produtos e costumes que por devoção e dedicação chegou às mãos de Maria
de Lourdes Modesto. Havia muito a fazer em matéria de inventariação,
classificação e arquivo de toda a informação e essa foi uma atividade
constante na sua vida. Com o propósito fundamental de assegurar
subsistência económica, abraçou dois grandes projetos de vida.
Por
um lado, assumiu integralmente ao longo de 31 anos uma relação
profissional exclusiva com a Fima, de que a ponta mais visível foi a
margarina Vaqueiro. São históricos os livrinhos de receitas por si desenvolvidos que eram entregues em troca de uns cinco invólucros Vaqueiro.
As receitas tinham um nível médio/elevado de sofisticação e isso caiu
muito bem num público essencialmente feminino que queria cozinhar melhor
e de forma mais internacional. Nas receitas utilizava-se margarina e
óleo Vaqueiro como ingredientes básicos, e muito do património de imagem
da marca ainda vem desses tempos. Nutria-se, até, alguma aversão à
manteiga e ao azeite pela supostamente maior salubridade dos produtos
Vaqueiro.
O poder de influência da grande Maria de Lourdes Modesto era e será
sempre o maior dentre todos os que entretanto meteram mãos à obra
gravando programas de TV e publicando revistas, artigos e livros. Nenhum
deles superou jamais o que a nossa pioneira lançou. O já desaparecido
Chefe Silva lançou a sua Tele-Culinária, de retumbante êxito e com uma
equipa grande a trabalhar com ele, da qual todas as receitas eram
testadas antes de ser publicadas. Surgiu também Filipa Vacondeus
que também reuniu grandes fãs à sua volta, mas estes e diversos outros
seguiram um filão que foi desbravado por Maria de Lourdes.
O
outro braço profissional que desenvolveu no pós-TV foi o literário.
Entrou para a editora Verbo pela mão de Fernando Guedes para fazer um
trabalho de grande fôlego, a Grande Enciclopédia da Cozinha. Para a
nossa diva, foi ouro sobre azul, pois transformou em tarefas válidas os
seus esforços e vontade de estudar a fundo e sistematizar todo um
edifício de conhecimento acerca de receituário e cozinhas regionais.
Escrita
fluida e estruturação quase matemática foram as grandes armas com que
se abalançou às colossais tarefas de que jamais alguém se tinha sequer
aproximado. É fundador o seu Cozinha Tradicional Portuguesa,
que fez no seio da Verbo sob direção artística de Sebastião Rodrigues e
fotografia de Augusto Cabrita, a que se juntou o gigante António Homem
Cardoso. Foi na altura uma espécie de nirvana o muito elevado nível a
que se chegou. Mas é dos meus grandes momentos enquanto jornalista
aquele em que estando com Maria de Lourdes em sua casa a vejo dirigir-se
a uma estante e a tirar o seu Receitas Escolhidas de Maria de Lourdes
Modesto, enquanto diz este é um livro muito bem feitinho. Profusamente
ilustrado em termos de técnicas culinárias e até formas de amanhar os
diferentes peixes e preparar carnes por exemplo para assados, torna tudo
incrivelmente acessível. Ainda não me cansei de o explorar,
confesso e sempre que procuro algum assunto ou prato encontro mais dois
ou três com pelo menos o mesmo interesse.
A paixão pelo
conhecimento e pelo inteiramente novo sobrepôs-se sempre ao plano
estritamente material, qualquer autor em qualquer país do mundo teria
acumulado fortuna com metade apenas do que Maria de Lourdes Modesto
produziu e ajudou a produzir. No meio de tantos de quem cuidou,
esqueceu-se de cuidar de si própria. Um aspeto devocional para que é
preciso também olhar para entender como a jovem professora do liceu
francês mantém intacta a sua juventude e candura. Não trocava a vida que
teve por nenhuma outra.
Vanguardista e motivadora
Agora a completar 90 anos de vida e quase 70 de carreira, Maria de
Lourdes é bem-vinda em qualquer parte onde apareça. Há um carinho
nutrido por alguém que fez da vida sacerdócio a favor de todos. Milhares
de cozinheiros sentiram as suas vocações por contacto, leitura e
prática com Maria de Lourdes. Continua a visitar restaurantes e a sentar-se à mesa com o prazer da festa com que sempre se sentou. E sempre alguém ou vários se levantam para a cumprimentar, com carinho.
Toda a nossa bateria de chefs
de primeira - serão hoje mais de cem - tem sempre lugar e tempo para
receber e instalar a grande mentora, como se de alguém de família se
tratasse. As suas críticas são sempre construtivas e não poupa nos
parabéns quando gosta e quando lhe é explicado o que tem no prato.
O
aspecto cultural e de intenção é ponto importante nas suas avaliações e
o seu próprio arsenal técnico é considerável. No entanto, jamais lhe
ouviram sugerir a um cozinheiro como ele devia fazer, em vez disso
pergunta. Tem veneração pelo ofício em si e por isso respeita. Maria da
Graça Castelo Lopes, Maria do Carmo Amaral Neto e diversas outras
personalidades ligadas a Maria de Lourdes desenvolveram de alguma forma
uma atividade lectiva e de treino profissional. O passo lógico desde há
muito teria sido a criação de uma academia de cozinha, o êxito seria,
ainda hoje, retumbante. É difícil entender tal não ter chegado a
acontecer, dada a empatia imediatamente gerada numa simples conversa,
quanto mais na cozinha, mexendo, conversando e aprendendo.
Maria de Lourdes é eterna. Obrigado, Maria de Lourdes Modesto.
* Maria de Lourdes Modesto já fez mais por Portugal à roda dos tachos do que muitos políticos especialistas em baboseiras.
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