16/04/2020

JOANA MARQUES

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Desmancha-prazeres

Muito se tem discutido o que é, afinal, a Covid-19. Tivemos a fase do "é só uma gripe", seguida de considerações várias sobre a inteligência do vírus (o que nos fez duvidar da inteligência de quem dizia que era uma espécie de resfriado). Mas ainda não vi nenhum especialista referir uma característica inegável deste novo coronavírus: é um desmancha-prazeres.

Sei que é muito mais do que isso, mas não tendo nada a acrescentar em termos científicos ou macroeconómicos, prefiro focar-me nos microengulhos que a pandemia trouxe. Lembram-se daquela professora de História que chegava mesmo em cima do segundo toque, destruindo a euforia que estava ali a fervilhar à espera de explodir quando soasse a campainha e se consumasse a ausência de um adulto aborrecido que nos queria falar dos visigodos, quando nós só queríamos jogar futebol humano? Pronto. É mais ou menos isto.

O coronavírus chegou para destruir os nossos sonhos mais selvagens. E também os mais corriqueiros, como ir ao café. De uma assentada, a Covid cancelou tudo. Parece um daqueles pais severos que se entusiasmam na hora de ditar o castigo: "ficas um mês sem Playstation, dois meses sem comer sobremesa, três meses sem sair de casa, meio ano sem futebol!". Se temos na vida, em todas as vidas, episódios que são pequenos grãos na engrenagem, como daquela vez em que partimos a perna na véspera de irmos de férias, a Covid-19 é como se alguém tivesse despejado todo o areal da praia de Moledo em cima das nossas cabeças. Ainda assim, não estamos nada mal. Há gente que está praticamente soterrada, como aquelas vítimas de partidas idiotas dos amigos, que os enterram na areia, deixando só a cabeça de fora. Muito giro. Aliás, se alguma vantagem podemos ver num eventual prolongamento desta pandemia, é adiar atividades cretinas de verão para o próximo ano. Mas é só.

Não sou dos que veem a Covid como um tsunami ou uma guerra, mas também não me junto (até porque não se pode) aos otimistas inveterados que passam os dias a listar as enormes vantagens da epidemia. Aqueles que descrevem agora o Mundo como um lugar melhor, onde os animais selvagens se passeiam tranquilamente nas ruas sem serem importunados por vis humanos. É gente que vê a humanidade como eu no 7.o ano via a tal "stôra" de História: sem a presença dela, a secundária era um sítio mais feliz. Acontece que se não fosse a existência daquela e de outros docentes, os meus pais também não me deixariam naquele recinto todos os dias às 8 da manhã... Logo, a sua inexistência inviabilizaria a minha felicidade no recreio.

Não sei o que pretendem estes ativistas da inatividade: que fiquemos em casa para sempre, apreciando, através de fotografias, amorosos macaquinhos que passeiam pelas ruas de Nova Deli, e fofos veados que fazem as suas voltas higiénicas em Odivelas? Não acho que vamos sair melhores disto. Acho que se sairmos disto relativamente na mesma já não é nada mau! É que podia dar-nos para sermos piores. Imaginem que passávamos a fazer do açambarcamento um modo de vida, precavendo uma próxima epidemia à escala global. Ou que nunca mais cumprimentávamos ninguém, usando a desculpa do "de um dia para o outro, pode aparecer um "ainda mais novo" coronavírus"...

Acredito que há sempre margem para piorar, portanto ficar na mesma não é tão mau como possa parecer. Eu sei que este vírus desmancha-prazeres veio também apresentar-nos prazeres que até hoje desconhecíamos: afinal, gostávamos de ir à loja do cidadão renovar o CC, gostávamos de ser incomodados pelo barulho de pipocas no cinema, gostávamos até de ir ao ginásio, embora andássemos a baldar-nos desde novembro de 2017, e até aquela fila de dimensões bíblicas, para pôr gasolina, no verão passado, durante a greve dos transportadores de matérias perigosas, nos parece agora uma deliciosa recordação de tempos de liberdade.

A nostalgia é como o ouro de 24 quilates. Banhado com isso, qualquer acontecimento se torna subitamente valioso. Será que quando tudo isto passar, vamos passar a ver estas banalidades com outros olhos? Vamos entrar com um enorme sorriso nas finanças? Vamos dizer ao cidadão do lado, no cinema, que pode continuar a comentar o filme em altos berros? Vamos correr para o ginásio? Claro que não. Esta última então é estupidíssima. Nunca correr para um sítio onde nos vamos cansar. Acho que somos rápidos a esquecer. O que se por um lado é bom, porque não ficamos com nenhum trauma, por outro dá ideia que somos um caso perdido.

Não há situação-limite que nos torne naquela "melhor versão de nós mesmos" de que tanto se fala. Somos uma versão sem updates disponíveis. Não dá para atualizar. Deixo aqui o meu palpite para o futuro: acho que vamos ter saudades destes tempos. Que bom, quando estávamos em casa de pijama e não tínhamos de vir a esta aborrecida festa de sete anos do nosso sobrinho. Não aproveitámos como devíamos!

IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
12/04/20

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