26/04/2020

ANA SÁ CHINA

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O legado das Marias

Em 1973, Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa, as "Três Marias", foram acusadas de haver escrito um livro atentatório da moral e dos bons costumes, as "Novas cartas portuguesas". O julgamento teve a primeira data em outubro desse ano, e fez sentar as autoras na Boa-Hora, em audiência declarada secreta, mas não chegou a concluir-se, em virtude de ter irrompido, poucos meses depois, o 25 de Abril de 1974.

Cúmplices em "causa maior" do que aquela que se julgava no pleito, a uma só voz, as escritoras diluíram a autoria literária (e certamente dariam algum trabalho se tivéssemos chegado à autoria legal) através da "sororidade", nessa que foi considerada a primeira causa feminista internacional.

Eu sou mulher e sou juíza. E em boa verdade vos digo que me sova violentamente a ideia de terem levado a julgamento um ato de livre criação feminina. E o murro atinge-me sobretudo o preto da Beca, que já trago entranhado na pele, depois destes anos de profissão. E também a alma, pois que é com ela que amo as letras, e as palavras que se fazem com as letras, e as ideias que se encontram nas palavras, sobretudo nas belas. Talvez porque tenha nascido em 1977 e, por isso, (mais) livre, montando a garoupa do que outras e outros tinham já aparelhado para as gerações futuras, com as flores da Revolução.

Igualmente me agridem severamente certas leis civis e criminais da época - as quais conheço com profundidade meramente histórica e chega-me. Batalhões de mulheres juristas (não juízas, precisamente por lhes ser legalmente interdita a função de julgar) devem ter-se irisado até à medula ao estudar tais cânones! Algumas calaram. Mas estou certa de que muitas falavam... ainda que a maioria baixinho. Toda aquela que nasce mulher, sabe-se igual. E todo aquele que nasce pessoa, sabe-se livre. E porque juiz que é juiz, acredita profundamente na igualdade e na liberdade - como seria possível sentenciar, com a convicção dos justos, nos ditames de flancos legais tão discriminatórios, arcaicos e vexatórios de que é escandaloso exemplo o conhecido 372.0º do Código Penal, outrora vigente?

Eu sou mulher e sou juíza. E talvez por isso não há vez que o meu pensamento, ao assomar esse e outros preceitos de pendor patriarcal e subversivo, se não me arrebate de perplexidade. Volveram 46 anos desde que o processo das "Três Marias" deixou de fazer sentido nos bancos dos tribunais, mas está longe de se alcançar o escopo que moveu as autoras. Aproveitamos o trilho, mas há muito mais por onde desbravar. Hoje já poucas se calam. E quem fala, não precisa de falar baixinho. Por isso, o meu obrigada sentido, profundo, a todas as que no passado se debateram contra o "imposto moral" que (ainda) nos cobram por termos nascidos mulheres. O meu gritado obrigada a estas mulheres maravilhosamente ariscas que ergueram vozes fêmeas, acutilantes e agudas, contra tudo o que era rigorosamente grave, para hoje eu, mulher, juíza, mãe, amiga, poder dizer, às escâncaras, que tenho o direito de ser inteira, poder dizer, segura, na veste com que aqui hoje me subscrevo: minhas Senhoras e meus Senhores, há mais Marias na Terra!

*Vice-presidente da Associação das Juízas Portuguesas

IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
24/04/20
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