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O legado das Marias
IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
24/04/20
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O legado das Marias
Em 1973,
Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa, as
"Três Marias", foram acusadas de haver escrito um livro atentatório da
moral e dos bons costumes, as "Novas cartas portuguesas". O julgamento
teve a primeira data em outubro desse ano, e fez sentar as autoras na
Boa-Hora, em audiência declarada secreta, mas não chegou a concluir-se,
em virtude de ter irrompido, poucos meses depois, o 25 de Abril de 1974.
Cúmplices
em "causa maior" do que aquela que se julgava no pleito, a uma só voz,
as escritoras diluíram a autoria literária (e certamente dariam algum
trabalho se tivéssemos chegado à autoria legal) através da "sororidade",
nessa que foi considerada a primeira causa feminista internacional.
Eu
sou mulher e sou juíza. E em boa verdade vos digo que me sova
violentamente a ideia de terem levado a julgamento um ato de livre
criação feminina. E o murro atinge-me sobretudo o preto da Beca, que já
trago entranhado na pele, depois destes anos de profissão. E também a
alma, pois que é com ela que amo as letras, e as palavras que se fazem
com as letras, e as ideias que se encontram nas palavras, sobretudo nas
belas. Talvez porque tenha nascido em 1977 e, por isso, (mais) livre,
montando a garoupa do que outras e outros tinham já aparelhado para as
gerações futuras, com as flores da Revolução.
Igualmente
me agridem severamente certas leis civis e criminais da época - as
quais conheço com profundidade meramente histórica e chega-me. Batalhões
de mulheres juristas (não juízas, precisamente por lhes ser legalmente
interdita a função de julgar) devem ter-se irisado até à medula ao
estudar tais cânones! Algumas calaram. Mas estou certa de que muitas
falavam... ainda que a maioria baixinho. Toda aquela que nasce mulher,
sabe-se igual. E todo aquele que nasce pessoa, sabe-se livre. E porque
juiz que é juiz, acredita profundamente na igualdade e na liberdade -
como seria possível sentenciar, com a convicção dos justos, nos ditames
de flancos legais tão discriminatórios, arcaicos e vexatórios de que é
escandaloso exemplo o conhecido 372.0º do Código Penal, outrora vigente?
Eu
sou mulher e sou juíza. E talvez por isso não há vez que o meu
pensamento, ao assomar esse e outros preceitos de pendor patriarcal e
subversivo, se não me arrebate de perplexidade. Volveram 46 anos desde
que o processo das "Três Marias" deixou de fazer sentido nos bancos dos
tribunais, mas está longe de se alcançar o escopo que moveu as autoras.
Aproveitamos o trilho, mas há muito mais por onde desbravar. Hoje já
poucas se calam. E quem fala, não precisa de falar baixinho. Por isso, o
meu obrigada sentido, profundo, a todas as que no passado se debateram
contra o "imposto moral" que (ainda) nos cobram por termos nascidos
mulheres. O meu gritado obrigada a estas mulheres maravilhosamente
ariscas que ergueram vozes fêmeas, acutilantes e agudas, contra tudo o
que era rigorosamente grave, para hoje eu, mulher, juíza, mãe, amiga,
poder dizer, às escâncaras, que tenho o direito de ser inteira, poder
dizer, segura, na veste com que aqui hoje me subscrevo: minhas Senhoras e
meus Senhores, há mais Marias na Terra!
*Vice-presidente da Associação das Juízas Portuguesas
IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
24/04/20
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