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IN "esquerda.net"
13/09/19
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Natália Correia:
a censura de “A Pécora”
Nesta peça, Natália Correia denunciou os poderes da Igreja e a relação estabelecida entre esta e o Estado, assim como o comércio religioso. Ao mesmo tempo, o povo tem consciência do seu poder colectivo. O Estado Novo não gostou. Por Ana Bárbara Pedrosa.
A autora arriscou esta peça em que se opunha claramente ao regime
vigente, com a sua moral oficial pro-catolicismo, questionando a Igreja e
a relação que esta estabelecia com o Estado, sendo das obras da
literatura portuguesa em que mais claramente se denuncia o comércio
religioso, banalizado pela ideia do milagre de Fátima (1917) e pela
consequente turistificação que o fenómeno provocou. Mexendo, assim, num
dos pilares fundamentais do Estado Novo, não espanta ainda que a obra
tenha sido proibida e que só tenha podido ir a cena após o 25 de Abril.
Ao longo da peça, notam-se alguns dos traços mais
marcados da estética de Natália Correia: o tom satírico, as ambiências
surrealistas, a linguagem que saltita entre a prosa e a poesia, entre o
erudito e o popular. Ao mesmo tempo, notam-se as suas posições
políticas, que também acompanham a sua obra literária: a denúncia das
opressões, a afronta da ideologia vigente, as personagens femininas
fortes, o carácter provocatório do texto em relação aos dogmas. Neste
sentido, a autora alcança a denúncia dos poderes da Igreja e da relação
que esta estabelece com o Estado, assim como a denúncia do comércio
religioso. Ao mesmo tempo, o sujeito colectivo da peça – o povo – tem
consciência do seu poder colectivo. A peça incita, portanto, a
sublevação em prol do término das opressões governamentais.
A peça compõe-se por um prólogo, três actos e oito
episódios. Logo no prólogo, dá-se a primeira pista para o tema da peça: o
suposto testemunho de dois pastorinhos, que teriam presenciado o rapto
de uma donzela por um anjo. Logo de seguida, no I acto, mostra-se onde
decorre a acção (Gal, “velho burgo encravado no centro de um país da
Europa meridional cujo nome deixamos ao público a escolha...”, uma clara
alusão a Portugal) e em que altura (últimas décadas do século XIX) e
começa a traçar-se o percurso de Melânia Sabiani, santa e prostituta.
Gal é apresentado como lugar de peregrinação, onde um fenómeno
sobrenatural teria ocorrido. O embuste que motivou a fama do lugar,
contudo, só será revelado no segundo episódio, quando Melânia chega ao
bordel de Madame Olympia.
A santidade de Melânia é aclamada pelo povo e por
Ardinelli, ex-noivo de Melânia e mandatário do comércio religioso que
existe em torno da figura da santa. Logo no início da peça, há várias
referências aos liberais e a personagens históricas, como o Regedor ou
as Pastorinhas, que não só indiciam o tempo da peça como indiciam o seu
tema: o questionamento de um dogma assumido pela Igreja católica e a
dupla face de um negócio religioso, com a sua consequente
turistificação, aqui apresentada como manipulação da credulidade de um
povo. No segundo episódio, a acção passa-se no bordel de Madame Olympia,
onde Melânia renasce enquanto Pupi.
No II acto, desvenda-se ao público leitor o que motivou a
fraude. Melânia tinha um romance com um padre. Tendo sido os dois
apanhados em flagrante por duas crianças, viram-se obrigados a inventar
um estratagema que lhes permitisse não serem denunciados. Assim, o padre
desempenharia o papel de anjo e Melânia o de santa. Melânia, que
reencontra Ardinelli, de quem fora noiva, no bordel, confessa-lhe o
embuste e conta-lhe o milagre encenado pelo Padre Salata, de quem
engravidara, acabando depois por abortar. Ardinelli reage com fúria,
marcado pela traição.
O seu espanto é compreensível: afinal, julgava que
Melânia estava no paraíso e acaba por encontrá-la num bordel. Pouco a
pouco, o instinto vingativo acalma e Ardinelli principia a encenar o
milagre da aparição da santa. Afinal, com a morte do Regedor, a outros
caberia a exploração do milagre.
Nesta altura, a trama adensa-se ao aumentar o número de
pessoas que sabem que o fenómeno que leva a Gal peregrinos não passa de
um embuste. Ainda assim, nenhuma dessas pessoas, conscientes da
intrujice, agirá no sentido de desfazer o erro, já que este lhes dá
ganhos, seja a nível monetário (Igreja, comerciantes) ou de captação de
religiosos (Igreja). Melânia, contudo, encarcerada num bordel, não será
beneficiada em nenhum dos planos e não se esforçará por manter a
história. Neste cenário, age como figura secundária que já teve o seu
tempo e já cumpriu o seu papel. Em nome do fenómeno, já nada lhe resta
fazer que não seja continuar a identidade previamente sugerida e
afirmada (o mesmo acontecerá com Bonami/Bonami-Rei em O Encoberto).
Para cumprir o seu papel de corpo que dá corpo ao mito e
ao fenómeno, caber-lhe-á somente fazer uma última aparição: aparecer
levitando ante a multidão, numa manobra de ilusão engendrada pela
empresa “Ardinelli & Tricoteaux, Investimentos em Gal”, que contrata
actores para participarem no milagre.
Assim, o acto volta-se precisamente para a encenação da
maquinação e é nesta encenação que a crítica ao comércio religioso,
através da ironia, encontra os seus pontos mais fortes: no III episódio,
há a já referida contratação da empresa “Ardinelli & Tricoteaux,
Investimentos em Gal”; no IV, o Bispo, que simboliza o luxo da Igreja, e
Ardinelli combinam a produção do milagre, mostrando-se os interesses do
poder religioso e do poder político, aqui respectivamente representados
pelas figuras mencionadas. No V episódio, dá-se finalmente o milagre,
apresentando-se Melânia em público enquanto a santa de Gal. O fenómeno
tem aceitação imediata e até os dois representantes das Ciências
Positivas, o Sociólogo e o Cientista Especializado em Medicina
Retrospectiva, caem no embuste, aludindo-se aqui à submissão das
ciências ao poder religioso.
No III acto, chega-se ao culminar da história: encena-se
o milagre da emancipação e Melânia rebela-se contra a sua estátua – e,
portanto, contra o povo de Gal. No VI episódio, no proscénio, Melânia
recita um poema em que é contada a sua história:
No VII episódio, Melânia vai ao Palácio Ardinelli
reclamar os lucros da aparição, mas nada daí obtém. Aí, é Paco quem,
para chantagear Zenóbia e Teófilo, dá a entender que divulgará o
embuste. No final do acto, Teófilo e Paco acabam por apertar a mão.
O VIII episódio do terceiro acto passa-se 30 anos mais
tarde e a Igreja prepara-se para canonizar a santa. Melânia está
envelhecida, persegue Paco, implora-lhe amor, ele despreza-a, ela está
arrependida, quer contar a verdade. Chegados aqui, o problema é um: o
povo não aguenta a verdade. Como virá a acontecer em O Encoberto, o embuste vê a necessidade de continuar a ser um embuste em causa própria, para sua própria segurança.
No VIII episódio, quando Paco já tem dinheiro nas mãos,
repudia e humilha Melânia: “Repartir o meu dinheiro com essas carnes
engelhadas quando com ele posso comprar todas as virgens do mundo?”,
pergunta-lhe, arcástico, enquanto ela, impotentemente, tenta impedi-lo
de partir. Furiosa, Melânia quer revelar a verdade que ninguém suportará
ouvir, que ninguém aceitará: “Uma puta! A vossa santa é uma puta.”
Ao ouvi-la, a multidão enfurece-se, avança sobre ela,
quer agredi-la. Já ensanguentada, às portas da morte, reclama a
identidade de santa, nega a estátua. O que diz é inconsequente e
protagonista acaba por morrer, sendo trucidada por um cortejo que
procura canonizá-la, ou à sua imagem, seguindo a sua estátua. O desfecho
é, assim, tragicómico, irónico: o povo rejeita Melânia para poder
seguir, imperturbável, a sua imagem, passando-lhe por cima do cadáver.
Fixado no símbolo, rejeita a realidade, prefere ficar com a ilusão
criada e recusa-se a confrontá-la, a ouvir palavras que a confrontem.
Recepção/censura de A Pécora
Assim que a obra foi impressa em 1967, a tipografia que a
imprimiu recebeu a ameaça de ter as portas fechadas, caso a obra
prosseguisse. Assim, acabou por ser publicada quase uma década depois do
25 de Abril. Natália justifica tão tardia publicação com a ideia de
que, face a um número tão elevado de publicações, a mensagem de A Pécora seria ofuscada.
O texto acabaria por vir a público em 1983, tornando-se
num dos êxitos do teatro português, já que permaneceu durante meio ano
em palco, na Comuna-Teatro de Pesquisa, com encenação de João Mota. No
que concerne ao teatro nataliano, merecerá também ser destacada, já que
foi a única peça da autora que foi representada no estrangeiro: a
encenação, integrada no I Festival de Teatro da Convenção Teatral
Europeia, foi ainda levada a palcos franceses, em Saint Etienne e Paris,
e irlandeses. A música da peça foi feita por José Mário Branco e a
protagonista, Manuela de Freitas, seria premiada graças à sua actuação.
* Doutorada em Literatura, investigadora, editora e linguista.
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13/09/19
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